Vem de longe essa arte, atravessando o tempo e fazendo poeira na história do sertão. Vem de um mundo em que as vestimentas, os utensílios, a mobília e a coragem eram de couro. Tempo social de grande riqueza poética em meio à vida dura de vaqueiros e cangaceiros, que orgulhosos da bravura, ornamentavam chapéu, gibão, peitoral, luvas, perneiras, calçados, alforges e celas de montaria com requintados arabescos de combinações harmoniosas.

Toda essa herança estética profunda se arranchou no Espaço O POVO de Cultura e Arte, no dia 30 passado, com a exposição Espedito Seleiro, Arte de Embonitar o Couro, que teve como atração de abertura uma conversa solta entre o homenageado e o jornalista Demitri Túlio, e que se estende até o dia 11 deste mês, com venda de sandálias, coletes, botas, cadeiras, bolsas, mochilas e o livro Meu Coração Coroado, de Eduardo Motta, com fotos de Hélio Filho (Senac/Ce, 2016), obra de alumiosa contextualização desse modo de significação cultural.

Incensado pelo uso de suas peças em novelas de televisão e grifes de moda, Espedito Seleiro, que vai completar 80 anos no dia 29 de outubro, não se deixa trair por vaidades. Sabe que o cavalo do designer da arte popular passou selado em seu terreiro e ele montou com gosto. Cabra do Arneiróz, que saiu da seca nos Inhamuns para escapar em Nova Olinda, no Cariri, ele aprendeu na caatinga que qualquer distração pode resultar em olho furado por espinho ou ponta de pau.

Por isso o papo de Espedito Seleito é reto, espontâneo e ratificador da sua sofisticação rústica de genialidade artesanal. Trata com naturalidade sua participação em eventos de moda, como a São Paulo Fashion Week, desfiles de escolas de samba, como anunciado para o próximo Carnaval carioca, ao lado do Bode Ioiô e do Dim Brinquedim, ou a exposição londrina agendada para o próximo dia 15, na galeria da Embaixada do Brasil na capital inglesa.

As tiradas são muito boas. Perguntado como foi o processo que o definiu como um dos Mestres da Cultura no Ceará, ele relatou a canseira dos questionamentos feitos à sua indicação, por ele ter casa própria e oficina de trabalho. Houve um momento em que ele teve que interpelar: “Vocês estão querendo selecionar mestres da cultura ou mestres da miséria?”. Lampejos espirituosos como esse revelam a confusão que fazemos ao querer resolver problemas sociais e econômicos diferentes com as mesmas fórmulas.

Espedito Seleiro está constantemente aberto às possibilidades do seu trabalho, mas, como todo habitante do ciclo do couro, atento a emboscadas. Sempre tentado pela inteligência concentradora do sistema capitalista, ele tem sido convidado a sair de Nova Olinda e ir fazer fortuna no Sudeste. Sua resposta é muito clara. Ficando no interior para atrair visitantes que querem comprar seus produtos e conhecer o ecomuseu montado em sua casa pela Fundação Casa Grande é uma forma de contribuir efetivamente com o lugar que o acolheu.

Ele contou ao Demitri, e a todos nós que estávamos lá, que só não tem é paciência para sair explicando as fotografias e materiais expostos. “Quem quiser olhar, pode olhar, mas eu mesmo não vou sair mostrando”. Pior é que certa vez ele resolveu acompanhar um grupo em visita ao museu e presenciou alguém perguntar com o dedo apontando para sua foto: “E esse véi, já morreu?”. Aí foi que ele resolveu mesmo não aparecer mais na sala.