Parte I, 11 de Fevereiro de 2020

A personagem mais extraordinária da literatura infantil brasileira está completando 100 anos neste 2020. Emília, a boneca que, assumindo perfeições e imperfeições do comportamento humano, conquistou o direito de ser criança de verdade, atreveu-se a abrir um caminho para a infância em nova configuração familiar e com modos transgressores de afirmação da criança com relação ao adulto; caminho esse que vem sendo percorrido por crianças e adultos capazes de sentir e de entender a infância como fundamental na dinâmica integrada e integral da sociedade.

A genialidade do escritor paulista Monteiro Lobato (1882 – 1948) criou Emília como uma referência pioneira na conquista de espaços onde meninas e meninos pudessem ver, ouvir, sentir, pensar e se expressar como crianças, dando assim um denso e sofisticado contributo cultural e educacional para o entendimento da infância, das relações infantis e do significado de ser criança no mundo. A personalidade irreverente e ousada de Emília anunciava há um século que a criança não seria mais apenas um ser menor, sem voz e exposta a regimes de palmadas e submissão.

Pioneira na emancipação infantil e, por conseguinte, da mulher, Emília, com sua cidadania infantil, desafiou regras e autoridades inibidoras da afeição e da liberdade, inserindo a criança no estatuto dos semelhantes, independentemente de idade. Ela surge no livro A Menina do Narizinho Arrebitado (1920) como filha da solteira Tia Nastácia. Nasce boneca do pano de uma saia velha, mas é criada por um núcleo familiar expandido, formado por gentes e bichos, em naturalismo social e humanismo educativo do que viria a ser o Sítio do Picapau Amarelo. Constrói igualdade na diferença e vira pessoa. Na personagem Emília, a individualização da criança está essencialmente vinculada à vida coletiva.

Palpiteira, mandona, exigente e autoconfiante, em seu avanço pelo campo da integração social ela leva o exercício da infância ao limite, alterando os cursos das narrativas, movida pelo valor da contestação, da mente livre e da similitude. Na literatura infantil mundial Emília tem um equivalente menino, que é o Pinóquio (1881), do escritor italiano Carlo Collodi (1826 – 1890), que nasce boneco de madeira e, de tanto ser verdadeiro em suas fantasias e contradições na descoberta do mundo, conquista o direito de ser criança. Para eles compus a música Pinóquio e Emília, gravada por Olga Ribeiro (1999) e pela Banda Dona Zefinha (2012).

Emília pôs na pauta da educação brasileira a necessidade de escuta da criança, rompendo com a lógica da incapacidade infantil de se pronunciar numa sociedade adultocêntrica. Mostrou que meninas e meninos não são bichinhos a serem domesticados, mas seres abertos a uma educação inspirada na consideração do outro como princípio de dignidade. No construtivismo lobatiano, quando a boneca reage à condição de demente e deixa de ser um brinquedo mudo, ela avisa que tem um “eu” e matricula a necessidade de a criança ser pensada e tratada em conformidade com o respeito mútuo das regras de convivência.

Intuitiva, irreverente e falando sem rodeios, Emília tornou-se tão envolvente que assumiu até função didática na educação brasileira. E fez bonito.

Parte II, 18 de Fevereiro de 2020

No livro Emília no País da Gramática (1934), a boneca da Tia Nastácia chega a visitar o Verbo Ser, “o mais velho e graduado de todos os verbos”, como escreveu Monteiro Lobato em carta ao educador baiano Anísio Teixeira (1900 – 1971). Em A Aritmética da Emília (1935), a personagem desmitifica a Matemática, trabalhando essa ciência dos números e da lógica como uma linguagem aplicada ao cotidiano da criança.

Monteiro Lobato não procurou o adulto na criança, mas, sim, a criança no brinquedo e no tempo da infância. Eis o segredo da luminescência infantil da menina mais incrível de todas. Em Memórias da Emília (1936), ela resume a brincadeira da existência afirmando que do nascimento à morte a vida não passa de um “pisca-pisca”. O Visconde de Sabugosa pergunta quem ela pensa que é, e Emília responde com firmeza: “Sou a Independência!”. E o sábio de sabugo de milho deduz que ela tem razão: “Por mais que os meninos façam, no fim quem consegue o que quer é a Emília”.

Anos depois, no livro A Barca de Gleyre (1944), no qual torna pública sua correspondência com o escrito mineiro Godofredo Rangel (1884 – 1951), Lobato reafirma a dedução do Visconde: “Ela me entra nos dois dedos que batem as teclas e diz o que quer, não o que quero”. Em História das Invenções (1935), livro que precedeu o Memórias, ela esclarece a razão de dizer o que lhe vem à cabeça: “Não sou uma boneca ensinada”. Não é à toa que entre tantos personagens maravilhosos que fazem o Sítio do Picapau Amarelo, a Emília foi a única que escreveu suas memórias.

Com rompantes reflexivos, gestos exagerados e palavras desconcertantes, Emília conjugou o verbo “igualizar” pela emancipação da criança, como indivíduo cheio de subjetividades, seres ativos, com formas de interagir, necessidades e gostos próprios. Bateu de frente com a tirania do isolamento da infância da vida adulta e colocou na agenda social do país o tema dos direitos da criança. Intensa em sua persona, forçou a consciência moderna ao reconhecimento da criança como um ser de Direito, chamando a atenção para a urgência de um processo libertador no qual meninas e meninos sejam efetivamente considerados.

Emília proclamou sentimentos infantis de participação que só seriam vistos como uma nova infância na década de 1960 nos estudos de Philippe Ariès (1914 – 1984), nos quais o historiador e demógrafo francês explicita as mudanças acontecidas no tratamento da infância entre as sociedades medievais, sem afeição especial aos adultos “em miniatura”, e o mundo moderno, que, ao perceber a infância como “uma idade de vida”, tratou de isolá-la em favor do que seria a preparação do adulto, acentuando com exageros de apartação o recalque e a intolerância.

O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), da ONU, contempla a proteção social à criança, “nascida dentro ou fora do matrimônio”. Depois evolui para a Declaração dos Direitos da Criança (1959), ganhando corpo na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989). No Brasil o espírito da Emília está presente no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Passos institucionais que vêm sendo trilhados rumo a um mundo capaz de dar a devida atenção à infância, mas ainda falta muito para chegarmos a ver a criança como pessoa, a criança cidadã que há 100 anos a Emília corporifica e brada.