A mentalidade de colonizado que perdura por séculos em países africanos e latino-americanos, provocando desenraizamento cultural e dependência aspiracional, é um assunto que me atrai. Por que me atrai? Porque não vejo qualquer perspectiva de mudança social e política nesses dois continentes se não repensarmos os efeitos de um ideal de vida que busca ser o que não somos.

A arte tem dado contribuições significativas para esse despertar, mas tudo parece muito solto, e essa dispersão não facilita uma compreensão plena dessa deformidade original do mundo colonizado. Sinto falta de movimentos culturais, sociais e políticos que promovam ligas de tramas paralelas com temas comuns presentes nas diversas linguagens artísticas e na literatura.

Acabo de ver, na plataforma Mubi, o filme “A negra de…” (1966), do cineasta senegalês Ousmane Sembène (1923 – 2007), que conta a história de uma moça do Senegal – país então com seis anos de independência – que de tanto sonhar com uma vida digna na sua matriz colonial consegue emprego de doméstica com uma família que passa a morar na luxuosa Riviera francesa, mas confinada ao apartamento dos patrões.

Tocou-me o tanto que o texto desse filme tem semelhanças com a história de uma amiga de uma amiga minha, que, na década de 1990, deixou Fortaleza para ir morar na Alemanha com promessas de uma vida melhor, e, além de amargar isolamento físico, sofria abusos sexuais. Inspirado nessa história compus a música “Iracema Brechtiana”, gravada pela Ilya, como parte da trilha sonora do meu livro “Bulbrax – sociomorfologia cultural de Fortaleza” (2017).

A estética do poeta e dramaturgo alemão Bertholt Brecht (1898 – 1956) está presente no filme de Sembène e na minha música, à medida que as protagonistas confrontam seus deslumbres com pensamentos reveladores de suas angústias e tomadas de consciência. Nos versos, a expectativa de “nova vida, outro lugar”; na tela, o dar-se conta do drama: “A França é uma cozinha, a copa, o banheiro e o quarto de dormir”.

Os limites dessas privações estão presentes também na música e no filme. “Eu não falo sua língua / não conheço seus amigos / não escrevo português / Não posso mandar notícias / e as cartas que recebo / é você quem lê para mim” é o som que me chega ao ver o patrão da jovem senegalesa lendo uma carta da sua mãe. “Não tenho como viver e você se diverte na França (…) Não deve pensar só em si mesma”. Ela rasga a carta e pensa: “Essa carta não vem da minha mãe”.

Pintura da sergipana Larissa Vieira, artista visual que valoriza as origens, a realidade e o significado da negritude em seu trabalho.

Baseadas em fatos reais, as situações de maus-tratos e abusos vividas pela senegalesa Diouana têm as mesmas razões das humilhações experimentadas pela brasileira Iracema: a noção de que a felicidade somente poderá ser ofertada por quem detém os códigos do colonizador, seu poder de consumo e um estilo de vida a ser imitado.

Os devaneios de que a vida é bem melhor para quem abandona a si mesmo viram desolação e pensamentos de escape quando as duas descobrem que isso não é possível. Iracema pensa: “Eu devia ter notado / quando vi você embriagado / sem querer me pagar”. Diouana também pensa: “Ela mentiu para mim. Não mentirá nunca mais”.

Quantas histórias paralelas como essas poderiam ser reunidas em favor do usufruto da diversidade global, sem a necessidade de abdicação cultural? Enquanto não se pensar nisso, seguiremos o destino de Iracema, cujo paradeiro não se tem notícia, e o de Diouana, que arrumou a mala para voltar para casa, mas, não sabendo como fazer isso, deitou-se na banheira da patroa e, com uma navalha, partiu.