Em um século de cinema de animação, a Rússia tem uma parte significativa de sua memória contada por parábolas, sátiras e alegorias visuais e poéticas, predominantemente focadas nas emoções de uma cultura popular que virou metáfora na busca de preservação da sua humanidade. Embora tenha sido pioneira de cinema animado com a utilização de insetos (1912), o povo russo passou a desenvolver essa arte na década de 1920, como recurso de formação política, suportado por marionetes de papel.

No ano de 1936, o governo de Moscou criou o estúdio Soyuzmultfilm, como resposta à chegada das animações Disney à ex-União Soviética. Inicialmente foram produzidos filmes inspirados nos contos da cultura oral e seus ensinamentos morais. Depois, com o passar das décadas e conforme as mudanças conjunturais, foram trabalhados temas da infância, da existência, da paz, da vida urbana e da política, entre outros, ainda que metaforicamente, tornados possíveis com a abertura para estúdios independentes.

O papel dessa arte na sociedade russa foi abordado na palestra “Animação Russa: a história de um país através do desenho animado”, proferida pela tradutora russa Maria Vragova e pelo pianista mineiro Gustavo Carvalho, curadores da Mostra de Animação Russa, que exibiu no Centro Cultural da Caixa, em Fortaleza, de 17 a 22 passados, obras produzidas desde a década de 1950. Cerca de quarenta filmes foram apresentados, em um curioso festival de movimento, plasticidade e música. Vou me referir à essência de alguns deles, mantendo os seus nomes originais, a fim de facilitar a localização na Internet.

Mukha-Tsokotukha (1960) conta a história de uma mosca que, no dia do seu aniversário, cai na teia de uma aranha; Taptizhka (1964) fala de um ursinho que se recusa a hibernar; Ezhik v Tumane (1975) trabalha os mistérios da existência na figura de um pequeno ouriço que se perde na floresta em dia de nevoeiro forte; Korova (1989) é feito de memórias da infância rural; Mitina Liubov (2018) tem como enredo um amor à primeira vista que se torna para sempre; Krokodil Guena (1969) revela os tantos afazeres de um crocodilo de zoológico; Ostrov (1973) narra a solidão na modernidade; e Stekliannaya Garmonika (1968) refere-se ao destino da arte em um governo burocrático e corrupto.

Os estilos são variados. Tem a série Nu pogodi! (1969 a 1986), decalcada da divertida Looney Tunes (Coyote e Papa Léguas) estadunidense, e obras sensíveis como Varezhka (1967), na qual a imaginação vence a racionalidade na aventura de uma menina e seu cachorrinho de croché. Skazka skazok (1979) concatena três histórias sobre a memória russa, com destaque para a nostálgica dança de despedida dos que partem para a guerra, ao tango Utomlennoe Solntse (1936) do pianista polonês Jerzy Petersburski (1895 – 1979).

A abordagem poética e fantasiosa está presente na maioria desses filmes e seus quês filosóficos. Troie iz Prostokvashino (1978) me parece uma boa síntese desse mundo, ao relatar as façanhas de um menino que sai de casa para viver com um cão e um gato cinza listrado, o famoso Matroskin. Esse felino sabido, carinhoso e dotado do senso de sustentabilidade foi quem ensinou as crianças russas a comerem sanduíche com a língua direto no salame, simplesmente porque, segundo ele, é mais gostoso. Essa é uma Rússia que pouco conhecemos.