A sociedade pós-automóvel
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 20 de Novembro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O crescimento do número de veículos no mundo tem saturado os centros urbanos de uma maneira insustentável. Em 1945, quando terminou a 2ª Guerra Mundial, o planeta tinha 75 milhões de carros. Hoje está com cerca de 850 milhões. O automóvel, mesmo ainda sendo símbolo de distinção social, começa a ser visto pela sociedade como uma das principais ameaças ao colapso das grandes cidades. O resultado desse paradoxo tem sido a também crescente pressão social por soluções para os problemas gerados pelo descompasso entre o excesso de carros e a insuficiência das malhas viárias, nem sempre condizentes com a quantidade de veículos que por elas trafegam.

A crise do automóvel, que está bem retratada nas estatísticas negativas da explosão da bolha do sistema financeiro mundial, tem feito as pessoas despertarem para a necessidade de mais ciclovias, de mais calçadas, de mais harmonia no trânsito e de espaços públicos mais arejados, como desejo de melhoria das perspectivas urbanas. Essas percepções, embora pontuais, vão adquirindo contigüidade e transformando-se em exigências de desenvolvimento humano. Os avanços da democracia participativa sinalizam que a conquista da qualidade de vida nos centros urbanos está diretamente ligada à qualidade da intervenção das pessoas na vida cultural, social e política da cidade.

Temos nesse ponto uma limitação de ordem sociológica que muitas vezes dificulta a efetivação de mudanças na nossa sociedade. É o fato de muitos de nós não nos reconhecermos como parte do problema que nos incomoda. Esse fenômeno, conhecido por dissonância cognitiva, redunda em uma perversa complacência social que inibe a nossa indignação diante dos problemas de acidentes anunciados de trânsito, de estresse por congestionamento, de poluição do ar e sonora, de desrespeito às normas de direção e de toda sorte de problemas de circulação de veículos e de pedestres. O mundo mudou, continua mudando e há quem pense que não tem nada a ver com isso.

O retrato da condição social era dado antigamente pela linhagem. Ser filho de fulano ou de beltrano era o que determinava a diferença entre quem mandava e quem obedecia. Em contrapartida, essas pessoas se sentiam na obrigação de servirem de papel modelo para nortear as aspirações sociais. De uns tempos para cá, passou a vigorar a afirmação social pela demonstração do poder de consumo e isso produziu um vazio de estilo de vida, fundado no excesso de descompromisso com os valores coletivos. E uma prova evidente desse comportamento de descivilização está no uso corriqueiro de veículos maiores do que o necessário, senão para se mostrar.

O carro grande, possante e vistoso, somado à soberba no trânsito, passou a ser tomado como um exoesqueleto de auto-afirmação social, dentro da patologia consumista da hipermodernidade. As infrações das leis do trânsito diferenciam-se de muitas outras, tais como a sonegação de impostos por falsos empresários e a malversação de dinheiro público pelos maus políticos, por serem violações explícitas. O que se apresenta em contratempo é o significado de dirigir e o significado de locomoção. Por isso, a questão do automóvel deve passar por uma revisão nos nossos padrões de socialibilidade. E o ponto de largada para essa consciência é a compreensão de que nas leis do trânsito a preferência deve ser sempre do mais frágil.

A vontade que alguém tem de se exibir no trânsito, como simbolização de vitória individual, vem do cinema hollywoodiano, a mesma máquina de comunicação que criou uma geração de fumantes. Fumaça é um dos pontos comuns entre carro e cigarro: a de um, dá câncer; a do outro, aumenta a pressão arterial e a freqüência cardíaca, sem contar com a questão da ampliação do buraco da camada de ozônio e das mudanças climáticas. A dependência do carro é igual a da nicotina, apesar de uma ser de ordem química e a outra de ordem psicológica. O certo é que ambas são responsáveis por altos dispêndios ocultos para a sociedade.

Apesar dos incentivos que estão sendo direcionados para a produção de carros silenciosos e movidos à força limpa (biocombustível, eletricidade, hidrogênio), a tendência é que ocorra com automóveis restrições semelhantes as que sucederam com o cigarro. A conversa marqueteira de imposto verde sobre combustíveis, para seqüestro de carbono na atmosfera não vai vingar. É pouco educativo poder pagar para infringir. A busca por benefícios ambientais e de saúde pública precisa ser mais sincera.Temos visto muitas medidas sendo tomadas, umas que não saíram do papel e outras que foram efetivamente para as ruas, como as faixas de priorização para a fluidez de ônibus, táxis e carros com mais de duas pessoas.

Muitos governos passaram a exigir um percentual gradativo de uso de biocombustíveis nos veículos públicos e nas concessões de transporte de passageiros. O sistema de rodízio por número de placa também tem sido adotado, embora essa medida seja vista como estimuladora do consumo de automóveis, pois muita gente compra o segundo carro para ter alternativa de placa e poder circular de automóvel todos os dias. A retirada de outdoors que, assim como os telefones celulares, desviam a atenção dos motoristas e causam acidentes de trânsito é uma medida associada à questão da poluição visual. Outra medida que tem sido aventada é a que acaba com o estacionamento em via pública para automóveis particulares.

A instituição de pedágios pode servir à constituição de fundos para aquisição de áreas destinadas à abertura de novas ruas, construção de praças, alargamento de espaços de convivência, melhoria da paisagem urbana, construção de monumentos de arte urbana, ampliação da presença da natureza na cidade, enfim, de urbanismo, na sua concepção mais essencial de pensar a cidade como espaço de aglomeração de indivíduos, de pensar as forças sociais nela concentrada e de pensar o ambiente construído como mesclador e dinamizador cultural, tecnológico, de conhecimento e de prática complexa da vida política.

O aumento de 18 para 21 anos na faixa etária para tirar carta de motorista é uma das propostas em discussão. Vejo essa provocação direta aos interesses dos jovens como muito importante para tirá-los da passividade à qual estão aprisionados em seus desejos de satisfação efêmera. O automóvel precisa deixar de ser sinônimo de liberdade para a juventude. A verdadeira liberdade a ser conquistada pelo jovem da atualidade é sair para a rua. Participar das mobilizações por intervenções urbanas que garantam a integração social e a recuperação do contato com o meio ambiente, para reumanizar a cidade, também tem cara de juventude.

Uma medida muito boa é a criação do sistema de bicicletas públicas. Nesse sistema, o poder público investe em uma rede cicloviária e disponibiliza bicicletas em diversos locais da cidade para deslocamentos entre pontos específicos. Esse tipo de solução aplica-se também para carros de redes particulares, às quais o usuário lança mão, com um simples cartão de débito de quilometragem, para se deslocar entre terminais distribuídos estrategicamente pela cidade. Do modo que for, a nossa evolução para o estágio de sociedade pós-automóvel, que se avizinha, precisa que a vinculação da liberação de alvarás de construção esteja em linha com as recomendações dos estudos de densidade de tráfego de veículos, a fim de que haja o aproveitamento racional e pleno do espaço urbano.