O vídeo da reunião ministerial do governo brasileiro que veio a público na sexta-feira passada (22) é uma peça de aversão à política e de revelação oficial da escassez de substância republicana do grupo instalado na Presidência da República. A indecência afrontosa, o senso de camarilha e a postura apologética da maioria dos participantes mostram um país entregue a exploradores da violência sistêmica, da retórica de inverdades e do uso do santo nome de Deus em vão.

É surreal o sentido dos discursos e a intenção dos seus enunciados nesse encontro em que o presidente e seus ministros tramam o aproveitamento da pandemia da Covid-19 para armar a população com finalidades autocráticas e por interesses milicianos, desregulamentar as leis de proteção ambiental e dos povos indígenas, fazer ameaças ao funcionamento institucional e assegurar impunidade pela negligência soberana do governo federal ante a morte de milhares de pessoas no país.

Coisa tão repugnante eu só tinha visto décadas atrás, quando assisti ao filme “120 Dias de Sodoma” (1975), de Pier Paolo Pasolini (1922-1975), no qual o cineasta italiano faz uma hipercaricatura do horror decorrente da banalização da vida por parte do fascismo que, então, ressurgia em seu país. O espírito blasfematório dos protagonistas que se sentiam proprietários do poder, nessa desconcertante obra cinematográfica, está presente também nos ânimos de prazer criminoso gravado no palácio presidencial do Brasil.

A alegoria biopolítica de Pasolini estende-se desde a exacerbação da vontade de ganhar o ontem até a indiferença extrema de um novo poder formado por foras da lei, negadores da política. Há muita semelhança com a ordem bolsonarista de inspiração trumpista. Basta ver e ouvir a podridão nas falas do chefe de Estado e de governo do Brasil e de seus ministros. É certo que essa escatologia excita parte significativa dos seus apoiadores e também dos seus opositores mais fiéis, pelo poder que tem de evitar o surgimento de lideranças alternativas e a busca da população por interesses comuns.

Os passos da antipolítica em curso no Brasil se encaixam nas três partes dantescas em que se divide o filme de Pasolini. A primeira parte, “O Círculo das Manias”, na qual os déspotas se masturbam sobre a subserviência dos seus eufóricos seguidores, todo mundo já viu. A segunda parte, que está exposta no vídeo da reunião ministerial, é “O Círculo da Merda”, quando os tiranos obrigam a população a comer suas fezes sem o menor escrúpulo. E a terceira parte, que ainda pode ser evitada por renúncia ou impeachment do Presidente, é o “Círculo de Sangue”, em que uma belicosidade furiosa elimina impiedosamente os seus opositores.

O trágico requinte de desmesura, presente no asco da proposta estética de Pier Paolo Pasolini, descreve em tom metafórico uma realidade que lembra os círculos infernais conduzidos atualmente no Brasil por um poder destruidor do senso civilizacional. O freio a esse anseio de poder sem limites, sustentado pela desfaçatez de um sofisma patriótico aviltante, requer o fortalecimento da política, o que não é tarefa fácil, considerando a atual insuficiência de lideranças sérias e comprometidas com o Brasil em si, com o Brasil no mundo e com o mundo. Seja como for, quanto mais demorarmos, mais nos aproximaremos do “Círculo de Sangue”.