O Brasil é um país aberto, receptivo e tão rico em sua diversidade cultural que tem o condão de abrasileirar quem passa por perto de sua força integradora. É também um lugar de gente que se lança pelo mundo com a facilidade de se sentir em casa por onde for, para, depois, retornar enriquecida e compartilhar o que absorveu na aventura das trocas.

A compositora e cantora gaúcha Adriana Calcanhotto, 53, passou por essa vivência e está na fase do percurso de volta, com a turnê A Mulher do Pau Brasil, show poeticamente delicado e politicamente firme, apresentado sábado passado (13) no Teatro RioMar, em Fortaleza. Sonhos, fantasias, frustrações e utopias ocupam o sagrado do palco.

Em um mix de serenidade melancólica com razão desejante, sublinhado por fina e dramática ironia, ela canta a errância de dores pessoais e coletivas em um composto estético sem ilusão, mas não desiludido. O cenário explode em vermelho-brasa toponímico, iluminando histórias sangrentas, corações dessangrados e uma democracia de veias abertas.

O espetáculo começa com ela vestida de preto, levantando de uma rede de dormir e unindo-se aos multi-instrumentistas Bem Gil e Bruno Di Lullo, ambos também de preto, para fazer “A mulher do pau brasil”, música na qual fala do seu deslocamento de Porto Alegre para o Rio de Janeiro e, depois, para Coimbra. Adriana não canta para um tempo que pode passar, sua voz segue o tempo de cada pessoa, como o dela mesma.

Tudo o que ela canta parece encontrar lugar nas emoções individualizadas e conjuntas da plateia. Os desejos escritos em suas letras e os sentimentos dedilhados em seu violão ora recebem aplausos calorosos, ora respostas de acompanhamento em coro, e muitas vezes sorrisos ternos e olhares silenciosos de quem não quer quebrar o encanto. Já de roupa vermelha, Adriana caminha em gestos de fada semeando poesia no bosque da caixa cênica.

Em sua crônica musical de brasa e carvão, a cantora trata os pesares nacionais com a fineza e o realismo que Stendhal romanceou a agitação conservadora dos franceses no início do século XIX, em O Vermelho e o Negro. A interpretação de A Dor Tem Algo de Vazio, da poeta estadunidense Emily Dickinson, com melodia de Cid Campos, flui na beleza do estilo próprio de Adriana Calcanhotto, com a força da tristeza sentida e refletida.

Os ventos ultramarinos que enfunaram as velas poéticas de Adriana arejam o show com preciosas obras. Do além-mar, ela canta Noite de São João, versos de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), musicados por Fred Martins, nos quais alguém vê do quintal a luz das fogueiras e escuta gargalhadas de pessoas que sequer sabem que ele existe. Do lado de cá do Atlântico, interpreta Mortal Loucura, poema de Gregório de Matos musicado por José Miguel Wisnik, em que as palavras ecoam e em seus ecos projetam novos termos que agregam advertência aos que não percebem que mesmo “a flor da formosura… usura / Será no fim desta jornada… nada”.

Ao refazer o caminho de volta, na condição de trovadora que anda “pelo mundo divertindo gente”, como compôs em Esquadros, ela encadeia uma fervilhante antropofagia semiótica que passa pelos pratos da Tropicália até chegar no Juízo Final, de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares: “O sol há de brilhar mais uma vez / A luz há de chegar aos corações”. Um show de requinte, brilho essencial e brasilidade à Adriana Calcanhotto.