Tenho uma atração especial por pessoas que fazem arte sem pensar nas avaliações de mercado; aquelas que são movidas por uma vontade existencial de revelar o que dá sentido à vida no seu infinito interior. Carmelita Fontenelle (1930 – 2020) era uma dessas artistas que levou para as telas sua história, seus segredos, confidências e sensibilidade; que pintou como um modo valioso de estar no mundo, refugiando-se nas lembranças boas.

Os quadros da Dona Carmelita foram pintados como recordações de períodos transitórios que marcaram sua experiência de mulher de militar em constantes mudanças de cidades pelo litoral, serra e sertão cearenses. Nasceu na vila de Soure e, quando tinha 13 anos, viu a terra natal mudar de nome para Caucaia. Quatro anos depois passou a assumir o recato exigido às mulheres casadas naquela época, mas não perdeu o fio de ligação com a cultura popular cristã, suas fantasias, prazeres e anseios contidos.

Sua pintura expõe um mundo íntimo de serenidade vestida de cores vivas, em obras de auto-compreensão com as quais ela procurou atribuir valor a si mesma enquanto alguém que resolveu contar o que lhe fez bem na Terra. Expressa aquilo que ela mais gostava. Em seu acervo não tem quadro de memória negativa. Esta é a senha deixada para quem quiser entrar no seu mundo imaginário.

Há muito valor nessas mensagens da artista em arte naïf, como se dissesse: “É assim que vejo, e é isso o que tenho para contar”. Na reconstrução dessas belezas, estava sempre acompanhada pelo espírito de cada lugar onde morou. São conteúdos que se unem em campos culturais revolvedores de fantasias realizadas ou não, e despertadores de seus modos particulares de caminhar para Deus.

Por onde andou, ela foi levando consigo passagens do tempo e do viver comunitário do interior; uma realidade simultaneamente familiar e estranha que aparece reunida nas telas das praças com crianças brincando e onde brincantes de boi se divertem chamando a alegria. Nessas pinturas é comum a presença de personagens negros vagantes, como se fosse ela em seu desejo de estar na liberdade da rua e nas festas que não pôde ir.

Carmelita Fontenelle em foto de Marcos Vieira.

Tudo o que admirou em silêncio Carmelita pintou como um pensamento alto que pudesse ser ouvido. Apreciar sua arte é como sentar em um alpendre e escutar pelos olhos os causos multicoloridos dos seus sentimentos transbordantes. Trata-se de arte singela e profunda, em estado de doação e reconfiguração de afetos, de uma contadora de histórias que fala com pincéis, tintas e grafismos frontais.

A memória visual da Dona Carmelita espalhou-se também em imagens que foram criadas a partir do que ela ouviu ou que a atraiu em outras obras. Em sua busca de si, do que viu, viveu e sentiu, ela decalcou muitas cenas que não presenciou de fato, mas que identificou como suas. Deste modo, figuras, situações e lugares rurais e urbanos fluem em seu trabalho por distintas percepções, possibilidades imaginativas, artísticas, espirituais e poéticas.

Carmelita abdicou de todas as ausências e de todas as dores para, já mulher madura e viúva, desenvolver uma trajetória artística em comunhão com o filho poeta Diogo Fontenelle. Primeiro na rua José Sombra, no bairro de Otávio Bonfim, onde moraram por mais de meio século, e em seus últimos anos, por uma década, na Beira-Mar, dando “Amém pelos Azuis do Céu Além”, como gosta de dizer o querido Dioguinho.