Ele inventou um lugar onde pudesse viver com o necessário. Nesse lugar integral, que ele chamava de Fazenda Manchete, meu pai, Antônio Rodrigues Cavalcante (1921 – 2015), conhecido como Toinzinho Rodrigues, ou simplesmente ‘seu’ Toinzinho, trabalhou de sol a sol por três ideais:

1) Ao lado da minha mãe

Socorro

, criar os filhos dotados de imaginação e de autonomia para serem o que sonhassem ser. O primeiro, o

Paulo

, fez engenharia, mas, como todo o dinheiro que ganhava com isso ele utilizava para viajar, contornou o destino e passou a ser um admirável agente de viagens; o segundo, eu, enveredei pelo mundo da escrita embalada pela música, que me dá a satisfação de compartilhar o que sinto e o que penso; e a terceira, a

Cynara

, pelos caminhos que a sua formação em psicologia permitiu, tornou-se uma destacada especialista em comportamento de compra e gestora de relacionamento com o cliente.

2) Fazer da Manchete um laboratório de criação de ovinos e caprinos, reconhecido por pesquisadores e pecuaristas como um dos pioneiros na experiência de melhoria econômica desses animais de pequeno porte. Ao longo de décadas fez cruzamento sequenciado e paciente entre raças, tendo na ovelha e no carneiro Bergamácia seu referencial para essa elevação de valor. Com isso, contribuiu para o desenvolvimento de um tipo de ovino que passou a ser tecnicamente denominado “Deslanado Nordestino”.

3) Viver em um ambiente agradável, marcado por uma intensa e prazerosa relação de respeito e de reciprocidade nos cuidados com a natureza. Neste aspecto, acrescentava ao meio elementos de contemplação frutos de inspiração artística, transformando o lugar em uma galeria ao ar livre de esculturas efêmeras circulares, construídas com objetos catados no dia a dia. Fazia tais intervenções estéticas com a simplicidade de um pássaro cantando, dando, assim, movimento ao que ele apelidou de “sistema” de viver.

A prática desses ideais fez da Fazenda Manchete um mundo a um só tempo concreto e mágico, conservado em nossos corações. Isso quer dizer que esse mundo, que está geograficamente localizado em Independência, a 300km de Fortaleza, no sertão dos Inhamuns, é também um lugar afetivo e sagrado; um lugar que revela um tanto da alma nordestina, suas dores, suas preces e suas fantasias existenciais.

Chamo esse mundo de SERTANIA, não apenas por se tratar de algo distante para muitos ou por ser um recanto do interior, mas pelo sentimento sublime e profundo que ele espalha sobre o sertão, como o fruto do pereiro quando se abre, lançando sementes ao vento. E quando o sopro do vento é forte e intenso, forma-se uma ventania. Pois, SERTANIA é também um substantivo feminino que sopra forte e intenso pela imensidão da caatinga.

Os sons, as cores, os movimentos e os sentidos desse lugar integram um vídeo e um audiolivro intitulados SERTANIA, produzidos pelo

N A J A – Núcleo Audiovisual Jaguaribe

, do IFCE, em ressignificação poética, musical e visual da Missa Sanfonada (2004) que fiz para celebrar os 50 anos de casados dos meus pais, Toinzinho e Socorro.

Com imagens captadas por

Marcos Vieira

na Fazenda Manchete e na Pedra Lisa em Independência, com áudio gravado por

Efigênia Alves

em Jaguaribe, música trabalhada por

Samuel Furtado

em Itapipoca, capa e tipologia preparadas por

Nathália Cardoso

em Fortaleza e edição operada por

Mario Fabio

em Jericoacoara, essas obras homenageiam o centenário do meu pai Toinzinho, por sua prática de uma sabedoria matuta do bem viver. Viva o ‘seu’ Toinzinho!!!

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Serviço: o vídeo e o audiolivro SERTANIA estarão disponíveis nas plataformas de streaming a partir de abril de 2021.

Fonte: Rivista do Mino 229