Depois do último rincão do Brasil de dentro existe uma essência cultural perdida, cuja porção simbólica constitui a matéria prima da obra do compositor baiano Elomar. Nela, personagens intuem a existência em um caldeirão de sutilezas íntimas onde se misturam parte significativa dos costumes, da história, do caráter e da fortuna da gente brasileira.

Esses cantos, nascidos na dinâmica dos processos interiores da cultura nordestina, estão fora da estandardização imposta à música do País. Sem descrever a realidade e sem falar do cotidiano objetivo, oferecem percepções profundas de experiências cumulativas, com tempero religioso, mítico e de engenhosa fabulação.

Uma dose cintilante desse amplo e precioso repertório chega ao público no álbum Titane canta Elomar – Na estrada das areias de ouro (Campo das Vertentes, 2017). Mais do que música, o disco da cantora mineira traz em sua dezena de faixas uma seara de encantamentos para serem sentidos em suas belezas esquecidas e semeaduras por um sentido de destino.

Titane canta junto com as notas cada pulsão do coração brasileiro, permitindo com sua interpretação de inseto raro canoro a apreciação inteligível da qualidade das estruturas poética e musical dessa fonte instigadora de contemplação e de mergulho nas nossas entranhas medievais, que é a magnífica obra de Elomar.

Ao som do violão e charango de Hudson Lacerda, do acordeon de Toninho Ferragutti, do bouzouki e da viola de André Siqueira, do contrabaixo em pizzicato de Aloízio Horta, da marimba de Kristoff Silva e contando com a voz de Pereira da Viola, em Chula no Terreiro, escutamos um personagem conduzindo o seu próprio encontro com o autor. “Certo dia a princesinha / Que vivia a sonhar / Saiu andando sozinha / Ao luar” (Acalanto).

Movida pela força milenar da oralidade e pelo poder da genialidade criadora de Elomar, a voz de Titane evoca poderosas esperanças. “Sonho que na derradeira curva do caminho / Existe um lugar sem dor, sem pedras, sem espinhos / Mas se de repente / Lá chegando não encontrar / Seguirei em frente / Caminhando a procurar” (Cavaleiro de São Joaquim).

Uma das funções de obras como a do Elomar é não deixar que escape de nós o significado da substância cultural da qual somos feitos. E Titane assegura o som dessas imagens civilizadoras, ante a pressão dos conflitos imediatos que atordoam o país. “Tive tanta dô de não ter nada / Pensando qui esse mundo é tudo tê” (O Violeiro).

Sons, causos e incidentes tirados simultaneamente da vida e do viver produzem mensagens manifestas ou implícitas que lidam com a condição humana para além dos tempos e das geografias. “Nosso Pai e nosso Deus / Disse que havéra de volta / Cuano essa terra pecadora / Marguiada in transgressão / Tivesse chêa de violença / De rapina, de mintira e de ladrão” (Cantiga do Estradar).

Elomar e Titane são uns amáveis desobedientes das inclinações artísticas que determinam o atendimento dos interesses prevalecentes na vida social e política brasileira. Ele vê a consciência da missão divina como uma necessidade da criação, e ela suplementa esse desígnio pondo a arte no registro do espírito, do temperamento e dos movimentos invisíveis da sensibilidade, realçada nos modos de vida e seus elementos culturais fundantes.