Print de arte de Caio Gomez (CB/D.A Press), postada em 08/12/2021 no Correio Braziliense, com detalhes da capa e da p.20 da riVISTA do MINO.

 

A maneira como a indústria fonográfica estruturou os padrões de consumo musical não contempla quem quer ouvir obras tendo como referência o autor. É como se não fizesse sentido o compositor que não é intérprete ter uma discografia própria. A grande prova disso pode ser verificada facilmente em buscas nas plataformas de streaming. São raros os autores que possuem uma lista sistemática que possibilite o acesso ao conjunto do seu repertório.

Um compositor como Paulo César Pinheiro, parceiro de Pixinguinha (1897 – 1973), Baden Powell (1937 – 2000), Tom Jobim (1927 – 1994) e Edu Lobo, com um cancioneiro vasto e de alta qualidade, não tem quase nada disponível quando a pesquisa é feita pelo seu nome. Entre as pérolas que podem ser encontradas, está o disco Capoeira de Besouro (2010), dedicado ao capoeirista Besouro Mangangá (1895 – 1924).

Os clássicos de Fernando Brant (1946 – 2015) vêm sendo publicados em álbuns próprios, com versões interpretadas por artistas de diferentes pegadas estéticas, entre os quais Beto Guedes, Mônica Salmaso, Joyce, Nina Becker, Roberta Sá, Seu Jorge e Milton Nascimento. Antes de falecer, o compositor tinha um único disco gravado com Tavinho Moura, espirituosamente intitulado “A conspiração dos poetas” (1997).

A esses dois exemplos podem-se acrescentar vários outros, como é o caso de Aldir Blanc (1946 – 2020), João do Vale (1934 – 1996) e Mauro Duarte (1930 – 1989), que têm pouca coisa publicada como discografia particular, e de Vinícius de Moraes (1913 – 1980), que, para não ficar à margem da indústria fonográfica, além de gravar suas parcerias com Toquinho, convidava intérpretes, como Maria Bethânia, Odette Lara, Chico Buarque, Ciro Monteiro e Elis Regina para cantar suas composições em discos autorais.

O vácuo de discografia autoral não está limitado a compositores que fazem mais letras ou mais melodias. É o que acontece com o letrista Humberto Teixeira (1915 – 1979), criador do baião junto ao grande parceiro Luiz Gonzaga (1912 – 1989), que aparece todo fragmentado nas buscas das plataformas. O mesmo ocorre com Evaldo Gouveia (1928 – 2020), autor de melodias de músicas emblemáticas da canção romântica brasileira em parceria com Jair Amorim (1915 – 1993), este também sem discografia própria. É a turma do “aparece em”, ou seja, aquela que praticamente só pode ser encontrada em discos de terceiros.

O certo é que não é comum discografia de compositores, a não ser no caso dos cantautores, os poetas que cantam as próprias criações, tais como Belchior (1946 – 2017), Luiz Melodia (1951 – 2017), Itamar Assumpção (1949 – 2003), Anastácia, Zé Ramalho, Elomar, Vital Farias, Chico César, Chico Buarque, Dona Ivone Lara (1921 – 2018), Tom Zé, Abidoral Jamacaru e Juliano Holanda. A recitação com acompanhamento musical também permite que álbuns sejam organizados pelo nome do autor, como tem feito Ademir Assunção com a banda Fracasso da Raça e com os parceiros Edvaldo Santana e Zeca Baleiro.

O mundo da produção, distribuição e comercialização de música ainda não atentou para o potente nicho da discografia de compositores. Tanto que nos formulários de upload das plataformas digitais não há espaço para a criação de álbuns e singles em nome de autores cujas obras são cantadas por intérpretes convidados. O sistema de streaming permite no máximo que se façam playlists temáticas, inclusive em torno de nomes de artistas, mas isso não constitui uma discografia.

A minha discografia, enquanto autor que não canta, mas que tem a produção sistematizada e disponibilizada na musicosfera, somente foi possível de ser construída em decorrência da combinação que faço de literatura com música. Quem entra com o meu nome nas plataformas de música digital encontra mais de duas dezenas de álbuns, EPs e singles do meu repertório, com incríveis interpretações de artistas que admiro, em fusão emotiva e comunhão de subjetividades.

A discografia de compositor permite experiências bem particulares na fruição musical por partir de narrativas autorais cujos sentimentos e emoções revolvem-se no eco das interpretações, abrindo as circunstâncias geradoras da criação musical para outras fabulações, sem limitações de estilos ou formas de cantar. Imagino que mais dia, menos dia os produtores musicais e a indústria fonográfica atentarão para essa forma de oferta de música inspirada na existência de quem compõe. Por que não?

Fonte
RIvista n. 243