Foi no Palacete Tereza, na Esquina Musical de São Paulo, centro histórico da cidade, que no sábado passado, 15, o pianista e compositor Mário Laginha apresentou um espetáculo cheio de versáteis interpretações da sua obra, com conectivos cruzados de cores lusitanas intercontinentais. Ecos de Portugal, Moçambique e Brasil convergiram no palco intimista da aconchegante Casa de Francisca para uma combinação de jazz, canção brasileira, imaginário do fado e música africana.

O prestigiado músico português, que passeia por variados gêneros, estilos, ritmos, melodias e sonoridades, convidou duas grandes cantoras e compositoras para compartilhar com ele o palco, em um admirável encontro de talentos, técnicas e virtuosismos: a paulistana Anna Setton e a moçambicana Lenna Bahule. Essa aproximação artística lusófona é parte do projeto Itinerâncias Culturais, realizado pela Connecting Dots, uma agência de música com bases em São Paulo e na cidade do Porto, voltada para o intercâmbio artístico e cultural entre países de língua portuguesa.

Anna Setton tocou violão e cantou lindamente composições próprias e do repertório de Mário Laginha e de Maria João, cantora portuguesa, de mãe moçambicana, em um diálogo de cordas e teclas levado ao ponto de som de cada canção. “Eu lhe ouvi entrar / vi no seu olhar / que estava querendo me atormentar (…) foi como se pegasse fogo em fria água / como se empurrasse a escuridão / como se iluminasse”, duetou suavemente com a música Um Amor, que, conta Laginha, não fosse a existência anterior de uma canção de Chico Buarque, teria sido intitulada de O Meu Amor.

Em seguida, o pianista chamou Lenna Bahule para vocalizar um canto sem palavras, sem sílabas, mas com sentido profundo, a composição Há Gente Aqui, faixa clássica do álbum Cor (1998), de Mario Laginha e Maria João. O som do piano em ponteio toca o corpo em percussão da cantora, e, entre legatos e respiração de encantos, ela, sempre maravilhosa, canta, sussurra e produz sons guturais em timbres e vibrações do seu ser essencialmente musical.

Em seus estudos de canto, ainda em Maputo, onde nasceu, Lenna utilizou a obra de Mário Laginha e declarou à plateia presente à Casa de Francisca sua satisfação de estar em duo com o autor de obras que lhe serviram de referência e aprendizado ao exercício vocal. A exploração dos sons do corpo e o uso da voz apurada em improvisações é uma das características da também dançarina moçambicana que contribuiu para abrilhantar o show. A essência da arte de Lenna Bahule está sobretudo na forma integrada com que ela aplica sotaques sonoros e se expressa corporalmente.

Quando Anna Setton e Lenna Bahule passaram a interagir juntas com Laginha chegou a vez de Maracangalha (Dorival Caymmi): “Eu vou pra Maracangalha / Eu vou! (…) Eu vou convidar Anália / Eu vou! / Se Anália não quiser ir / Eu vou só!”, música de deslocamento simbolicamente em linha com a ideia de travessia presente no espetáculo. E para sublimar aquela noite de amor, elas cantaram Rosa (Pixinguinha / Otávio de Souza): “Tu és divina e graciosa / Estátua majestosa / Do amor / Por Deus esculturada / E formada com ardor / Da alma da mais linda flor / De mais ativo olor / Que na vida é preferida / Pelo beija-flor”, revolvendo emoções e sentimentos em sua mais pura humanidade.