Debate bom é aquele que fica o tempo todo instigando a gente a imaginar coisas, e até a pensar se estamos mesmo pensando. Assim foi a conversa com Ailton Krenak e Bené Fonteles no tradicional programa “Sempre um Papo”, de Afonso Borges, transmitido pelo YouTube na quinta-feira passada (6/5). Em torno do tema “Arte sagrada e espiritual de viver” os dois agitaram seus maracás de seres despertos e atuantes por um novo projeto de humanidade.

Humanidade? Qual? Ailton diz que sempre põe essa palavra entre aspas, como um sinal de atenção: “olhe o que você pensa e o que você é”. Teria espaço para o que é comum no que ele chama de “clube seletivo da humanidade”? Se a Mãe-Terra oferece o sustento para todos, de onde vem essa vontade de desigualdade? A potência de cisão, afirma, resulta do tipo de sociedade que foi construída e que continua sendo aceita.

Pelo visto, só piora. Existe uma sanha de segregação que cresce e cresce e cresce como um algoritmo desembestado apartando tudo. Conciliar tornou-se um verbo amaldiçoado na agenda social e na relação entre humanos e não humanos. Estava pensando nisso quando o Bené fala que há milhares de anos muita gente vem alertando que os caminhos escolhidos nos levariam à falência dos sistemas econômico, político e intelectual.

E uma proposta de humanidade passa por um projeto de nova Terra, argumenta. Apenas sobreviver é indigno. Aqui entra a arte na vida de Bené, como entraram os rios, as pedras e as cachoeiras. Esse viver inspirado no convívio com a natureza é manifestação espiritual. Ailton associa a totens as pedras em tamanhos desiguais que Bené equilibra em suas andanças pelas matas, porque elas evocam sentimento de devoção.

Bené Fonteles revela a atração que sente pela intensidade que tem dentro das pedras. “A base da formação da vida é geológica; depois vieram as plantas e os animais”. Assim, ao arrumar umas pedras sobre as outras, harmonizando seus volumes desiguais, ele faz um exercício de busca do próprio eixo primordial. Faz isso conversando com as pedras do mesmo modo que conversa com árvores e beija-flores.

Afonso Borges realça que tais esculturas não servem para levar para casa, para expor em galerias ou vender para colecionadores. Elas ficam lá onde foram feitas. Isso fez-me recordar do hábito de fazer esculturas circulares efêmeras desenvolvido pelo meu pai Toinzinho (1921 – 2015) no entorno da nossa casa no sertão. Esse gesto, segundo o Bené, é de autoconhecimento e de identificação profunda com aquela matéria presente no meio.

Ailton Krenak acredita na Pedagogia da Terra, uma ciência natural e sublime por meio da qual a Mãe-Terra ensina a seus filhos a linguagem da cura e faz sentir a experiência da vida para além dos parâmetros racionais. Esse aprendizado emana do amor pela Terra e da gratidão pela Vida. Precisamos ser “terranos” (isso mesmo, como na série literária germânica Perry Rhodan), agarrados à Terra, sentindo seu cheiro e ingerindo sua essência sagrada.

A espiritualidade nas vozes de Bené e Ailton ecoa como o que poeticamente se chama de natureza nas relações culturais, onde o sagrado torna-se sinônimo de vida. Nesse sonhar com a Terra, a experiência cognitiva e sensorial dos dois mostra que estaremos no caminho para a cura quando percebermos que o sagrado pode ser apenas uma água limpa, e que a arte é uma boa companheira na ampliação dos campos da consciência da nossa humanidade. Mas qual humanidade?