Dei de cara com o livro de um antropólogo que, entre abril de 2013 e agosto de 2014, morou em um bairro na periferia de Salvador, na Bahia, pesquisando a vida e o viver dos evangélicos. Dessa convivência, Juliano Spyer escreveu o livro “Povo de Deus” (Geração Editorial, 2020), uma obra que vale a pena ser lida, com olhar desarmado e atento, por ser esse um dos temas mais complexos da atual dinâmica social, cultural e política brasileira.

Para não entrar nas características de distinção entre protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais – até porque isso está bem explicado no livro –, vou me referir apenas aos evangélicos, como fenômeno de transformação, constituído preponderantemente pelos contingentes mais pobres do país, onde está a maioria dos pardos e dos negros, dentro da hierarquia gradual da cor, sejam eles policiais ou bandidos, jovens ou idosos, homens ou mulheres.

O que mais me chama a atenção nesse livro são as evidências de que a adoção religiosa evangélica estaria mais ligada a uma sofisticada capacidade de sobrevivência do que à religiosidade em si. Isso porque as igrejas de bairro oferecem às pessoas das comunidades periféricas muitos serviços negligenciados pelo Estado; serviços não necessariamente prestados por traficantes e milicianos no controle de seus territórios.

Detalhe da obra “Le fils de l’homme” (1964), do pintor belga René Magritte (1898 – 1967).

Por enfrentarem diariamente tantas situações desesperadoras e por morarem em lugares com elevados índices de criminalidade, a conversão seria “uma escolha vantajosa e inteligente do pobre” (p. 107). Aos que “aceitam Jesus” nos termos evangélicos da recompensa à adesão e à reverberação da palavra de Deus, muitas mudanças podem ocorrer, pelo estímulo que passam a receber nas redes de ajudas mútuas e no incentivo a um tipo de empreendedorismo cujo aspiracional é ser patrão, na chamada Teologia da Prosperidade.

Essa forma de ambição naturalmente é vista por quem raciocina por abstração, e não por necessidade, como coisa de conservador, de gente manipulada por pastores oportunistas e lideranças políticas que se aproveitam do que seria uma alienação negociada para, em nome da família e dos bons costumes, serem conduzidos a cargos públicos, sem exigências de preocupações com as pautas de justiça social e corrupção.

É como se aderir a uma igreja evangélica fosse uma escolha, não de fé, mas de busca por uma vida materialmente melhor, dentro de um certo estado de bem-estar social informal. O fato de os evangélicos geralmente não falarem de si como vítimas do sistema os colocaria, na reflexão do autor, como alvo de críticas por parte de intelectuais que se veem como “porta-vozes das camadas populares”. No entanto, para o bem ou para o mal, há casos que revelam uma sutil inteligência social no envolvimento das pessoas, como o caso das mulheres que ganham autoridade moral ao recrutarem e converterem maridos, filhos, vizinhos e colegas de trabalho.

Os problemas cotidianos, de desemprego, dependência química, reabilitação de presos e da violência doméstica, encontram respostas efetivas nas igrejas evangélicas, que, segundo Juliano Spyer, funcionam como redes sociais de proteção. “A cada ano são abertas 14 mil novas igrejas evangélicas no Brasil” (p.73), um sistema de franquia totalmente desburocratizado e que, em muitos casos, permite que pastores sejam remunerados com base no culto ao sucesso e à salvação.