Em um dia de 1998, cheguei ao Minimuzeu Firmeza e o Estrigas (1919 – 2015) tinha pintado um óleo sobre tela com cena de violência: dois homens espancavam um terceiro em uma atmosfera sombria; tudo muito descolado do abstrato lírico, das aquarelas e das cores suaves mais frequentes em suas obras. Disse que pensara em fazer uma série de pinturas externando seu olhar sobre a brutalidade com que costumeiramente as pessoas mais pobres e as negras são sacrificadas no país, mas que tinha desistido por entender que não era necessário mais de uma tela para pintar a iniquidade. E me deu o quadro de presente.

Pois foi exatamente dessa tela que recordei ao ver o vídeo com o espancamento que levou à morte o servente de pedreiro, negro e evangélico João Alberto (1980 – 2020) por seguranças de pele clara, em um Carrefour de Porto Alegre, na quinta-feira passada, 19. É desconcertante a intensidade com que esse tipo de evento se repete no Brasil e no mundo. Estrigas tinha razão: o constante suplício do corpo preto e pardo tem causa profunda na falta de consciência da importância das diferenças como essência civilizatória.

A humanidade somente inaugurará uma nova era quando acabar com o racismo. E não é a tecnologia que determina a chegada de novos tempos, mas as conquistas e os acordos sociais. O maior valor das tecnologias de comunicação digital está no suporte que elas oferecem a esses processos. Havia um celular presente e alguém indignado quando aconteceram os casos de George Floyd (1980 – 2020), assassinado por um policial branco em maio passado nos Estados Unidos, e de João Alberto; ambos de 40 anos, negros e asfixiados até a morte.

Óleo sobre Tela de Estrigas (1919 – 2015) sobre a violência (1998).

Ao serem espalhadas pelas redes, imagens de crimes como os que tiraram essas vidas iluminam espaços na autoconsciência social e histórica produzindo rupturas no olhar. Respostas e ressonâncias invertem vulnerabilidades ao potencializar a interlocução múltipla nas relações inter-humanas, por todo o horizonte da atualidade. Se a sociedade sente que vidas pretas são importantes, e isso se estabelece como um valor sagrado, a discriminação e o preconceito entram em processo de fragilidade na agenda social, cultural, política e econômica.

Cenas de violência, como a que foi simbolicamente pintada pelo Estrigas, ganham escala de compartilhamento, muitas vezes em tempo real, e o que antes ficava abafado agora explode nas redes e nas ruas em protestos e manifestações antirracistas, retumbando e virando atos com feições e abrangência planetárias. A angústia resultante dessa triste discriminação vai virando crença comum e sedimentando esperanças.

O fim do racismo é um dos pilares de sustentação para o que virá após a hipermodernidade. Contudo, no neoliberalismo sem freios, com o seu poder de atropelar significantes de justiça social, a coerção física deixou de ser monopólio do Estado para ser exercido também por empresas privadas de segurança, reforçando o arbítrio como norma social em favor da lógica da dominação e da submissão.

Não fosse a facilidade de gravar um vídeo e de espalhar tais absurdos, grande parte das pessoas os veria de perto e agiria como se estivessem distantes, como se não pudessem fazer nada. Registrar momentos perturbadores para propagação é uma forma de cidadania orgânica que explicita a seletividade das vítimas e contribui para a consolidação de uma nova conduta individual e coletiva pelo direito à dignidade e à vida.