Literatura e música são linguagens irmãs. Ambas têm pontos de confluência nos sons, onde se encontram o explícito e o implícito pela dupla articulação de fonemas e acordes. As interações entre o ler e o escutar quebram eventuais sequências lógicas, abrindo espaços para a cocriação instantânea de leitoras e leitores, em suas emoções exclusivas, transfigurações e formulações pessoais.

Fonemas e acordes são cirandas auditivas que facilitam centralidades imaginárias, estimuladoras da relação da criança com o ambiente que se depara. É sobre isso que falarei na Bienal Internacional do Livro de São Paulo, por ocasião do lançamento (09/07) do meu novo livro de literatura e música para crianças, “Que noite, Torito!”.

Por ser espacial, a música atua no letramento como um portal de sons propagadores de atmosferas estéticas, oferecendo conteúdos paralelos sem sair do enredo. Esse é um experimento que venho testando há mais de vinte anos em livros e álbuns infantis, nos quais a receptividade sensorial se volta para o apreciar, o sentir e o vivenciar como extensões de leitura.

As cantigas, mesmo como partes integrantes dos episódios relatados, não obedecem à sequência da narrativa. Elas exercem a importante função de abrir janelas para que a criança leitora possa enxergar o seu lugar no que está se passando, e possa também deslocar cenas na proporção das suas individualidades.

A música enaltece o ouvido no entendimento das palavras, sublinhando momentos da história contada, ampliando o seu contexto e contribuindo para uma assimilação ativa e subjetiva da obra literária. As palavras, por sua vez, dão sentido cognitivo ao que a criança ouve. É um processo de sinergia muito bonito, no qual uma linguagem opera como subsidiária da outra, despertando interesses e facilitando o domínio da leitura.

Detalhe de ilustração do artista colombiano Canizales para o livro “Que noite, Torito”, de Flávio Paiva (Telos Editora, 2022).

Na combinação de literatura com música, o texto literário funciona como suporte para a música, e a música atua como ficção aumentada, fomentando a aquisição de competências de leitura. A música, escutada em função de episódios, e o acontecimento, relatado pela ideia contida nas palavras. De um lado, um tema atraente; do outro, sons aos quais a criança pode atribuir significados, de acordo com suas reações afetivas.

No livro Torito, trabalho a sociabilidade do protagonista com personagens presentes no seu repertório cultural. Quando, sozinho na hora de dormir, brinca com os pensamentos e a imaginação, ele puxa para si a leitura e o canto do próprio ninar, divertindo-se enquanto adormece ou adormecendo enquanto se diverte, ao tempo em que é embalado pelos brinquedos no silêncio do quarto.

Por alusões de intertextualidade e de intersonoridade, a leitora e o leitor podem conviver com os movimentos do protagonista, construindo compreensões particulares com base na leitura do conjunto de circunstâncias que compõe o enredo do livro. A prosa segue após cada poema, mas as imagens contidas nos sons continuam acompanhando o desenvolvimento do tema na vida da criança.

As propriedades musicais das palavras abraçam prosa e verso, intensificando a sonoridade da leitura em uma virtualidade povoada pelos pensamentos e pela imaginação, construindo competências de letramento. Nesse campo de explorações da literatura e da música infantis, mesmo durante a leitura solitária há sempre uma voz recepcionando vontades de descobertas e produzindo imagens que chegam da memória e da fantasia.