O que torna um espetáculo encantador é o conjunto de vínculos que ele provoca na interação palco e plateia e a sensação que fica em quem assistiu de ter participado de algo a ser lembrado. Assim foi o show “Entono”, da cantora Mallu Viturino (19 anos), no Teatro Dragão do Mar, sexta-feira passada (27), com sua pluralidade de afetos.

Realçada por qualidades essenciais da arte em seu estado natural, a apresentação de Mallu, com base no repertório autoral do EP homônimo, produzido em 2021 de forma independente pelo músico Rami Freitas, e em algumas músicas inéditas, contou com uma plateia cheia de cumplicidade, sem proselitismos ou julgamentos morais, em múltiplos códigos da vida afetiva.

A cantora, da comunidade costeira de Caraúbas, na Região Metropolitana de Fortaleza, compõe e canta o indivíduo no coletivo, as amizades, os quereres, os impulsos e motivações do corpo, da pele, da voz, do lugar onde mora, por onde anda e a proteção dos antepassados. O show contou com arranjos e direção musical de Rami Freitas (guitarra, beats e efeitos) e Marcus Au (baixo e sintetizadores), com percussão de Lucas França e produção executiva de Gerson Porto.

O público todo fez participação especial nesse espetáculo, mas algumas pessoas subiram ao palco para cantar com Mallu Viturino, em momentos de deslumbrante aconchego. Com o irmão Muriel, entoou canções de afro-ancestralidade que falam de roda em fundo de quintal, como “uma chance nova de amar”, de danças de saudação aos seus reis e da satisfação de poder contar de outro jeito versões que recebeu da história.

Laços emotivos foram ganhando intensidade na combinação da luz de Aline Rodrigues com a técnica de som de Agno César e o figurino Liamê de cores vibrantes. Mallu chama o pai Eudson, com seu pandeiro, e a mãe Mariza, de corpo inteiro, para cantar com ela o samba do amor que fundamenta a sua existência. Em seguida, espalha melodias e harmonias ao lado da cantora trans Mumutante em uma sensível balada amorosa de amadurecimento que perdura em sua eternidade temporã.

Rami Freitas, Mumutante, Mallu Viturino, Lucas França e Marcus Au. No detalhe, o pai Eudson, a mãe Mariza e o irmão Muriel com Mallu Viturino.

Pode-se encontrar na música natural de Mallu Viturino um tanto da leveza lírica entoada pela cantora caruaruense Gabi da Pele Preta na “Canção para curar a voz”, composição-manifesto da ‘fada negra’ paulista Uma Luiza Passos, e a organicidade de pertencimento belamente ressoada na interpretação de Fanta Konatê em “Mandén”, parceria dela e Luís Kinugawa em que a cantora guineana exalta o amor, a diversão e o trabalho como pontos de conjunção do seu povo.

Mallu Viturino canta e toca batuque ao djambê, dando eco a composições autorais que brotam da sinceridade criativa presente na potência da sua negritude leve e poética. Mostra-se contente com a consciência que tem do seu repertório nascente. Está no seu tempo, não tem pressa. Depois de cantar o bis, a plateia pediu ‘mais uma’, e ela, com feminina espirituosidade, apenas disse que não tinha outras músicas para cantar.

Essa liberdade de ser o que é e de ter o que tem deu o tom do envolvente “Entono”, um show que uniu alegria e carinho na reciprocidade de gestos de cenhos relaxados e trocas de sorrisos tentadores. Na sua espontânea partilha do mundo, orientada para o mundo, e com a abundância afetiva transbordante que habita o seu ser, Mallu está em sintonia com os movimentos e mudanças em curso na humanidade para o estabelecimento da necessária indivisibilidade do diverso.