Com o tema Madiba Mandela, o Sol da Liberdade, o maracatu Nação Fortaleza levou na noite de domingo (11/02) seu cortejo para a avenida Domingos Olímpio. Na marcação do ferro e dos tambores os brincantes entoaram, tocaram e dançaram a loa composta por Calé Alencar, e tirada por ele e Edmar Gonçalves, em homenagem ao centenário de Nelson Mandela (1918 – 2013).

A saudação ao emblemático líder sul-africano feita por um séquito de estandartes, enfeites, batuques e negrume no rosto é uma revelação potente e bela da imanência atemporal e transterritorial que vem dos bulbos originários do maracatu cearense. Esta é uma manifestação nascida da louvação de uma gente mestiça solidária às suas matrizes afro culturais.

O Ceará foi o primeiro estado brasileiro a abolir a escravatura (25/03/1884), fato que dá sentido moral e histórico aos participantes do maracatu para seguirem tirando loas libertárias diante das desigualdades locais e de todas as discrepâncias sociais, políticas e econômicas causadoras de violência no mundo. “Viva Mandela / Salve os Deuses da Mãe Terra / Salve a paz / E não a guerra”, diz o canto de asfalto.

O maracatu de cara tisnada é uma tradição que há décadas representa irmandade e reverência à negritude. Nos últimos anos, a tacanhice do ativismo globalizado chegou a apontar essa prática de rosto pintado como decalque de “Blackface”, recurso jocoso utilizado entre os séculos XIX e XX por estadunidenses e britânicos, a fim de ridicularizar os negros e suas culturas.

Em muitas circunstâncias, o negro brasileiro recorreu a transfiguração. As primeiras confrarias de “pretos”, no século XVII tinham a aceitação nominal, e não espiritual, de Nossa Senhora do Rosário, que era branca. Assim, ocorreu também com o culto a Iansã na imagem de Santa Bárbara e com o orixá Ibeji, a divindade gêmea da vida, nas figuras de Cosme e Damião.

Tudo isso está na gênese do maracatu enquanto auto popular e, posteriormente, como antiprocissão carnavalesca. O uso do rosto mestiço pintado não o transforma em máscara. Não se trata de adorno, mas de pele que confere ao brincante aproximação com uma natureza cultural que guarda dentro de si. Esse empretecimento de face revela identificação e ideia de fraternidade.

O nome tribal de Mandela é Rolihiahia. Nelson foi uma espécie de batismo que os ingleses conferiram a ele por ter tido acesso à escola. Todavia, o fato de ser um negro com nome de branco e de falar a língua do colonizador, não o impediu de olhar nos olhos da extrema segregação racial para escapar dos ressentimentos e liderar a conquista de direitos políticos e civis até então negados à maioria negra do seu país.

O apelido carinhoso de Madiba acompanhou Nelson Mandela em sua luta, mesmo quando foi acusado de condescendência com brancos nos esforços de desmonte da apartação. Para conquistar a liberdade de expressão das diferenças e atenção a seus conflitos multiétnicos pelo campo do poder e da autoridade precisou ser eleito, em 1994, presidente da África do Sul, a maior economia do continente africano.

Mandela em um maracatu que tem reforço de negrume na cara é, portanto, uma mensagem de que a política precisa de grandeza. Com essa loa, o Nação Fortaleza coloca a cidade na dança preciosa e concreta da alteridade, em um mundo carente de realidade essencial.

Fonte: https://www.opovo.com.br/jornal/colunas/flaviopaiva/2018/02/mandela-no-maracatu.html