Da obra da escritora dinamarquesa Karen Blixen (1885 – 1962) eu só conhecia o drama alegórico A Festa de Babette, levado ao cinema pelo seu conterrâneo, o diretor Gabriel Axel, com realces rituais e sensuais gastronômicos. A protagonista do conto é uma refugiada francesa que, em troca de abrigo, trabalha como cozinheira na casa de uma família puritana da Escandinávia e, ao ganhar na loteria, gasta toda a grana em um poético banquete de comunhão e celebração da vida.

A produção literária de Blixen é extensa e outros trabalhos seus viraram filmes também, como A Fazenda Africana, levada às telas pelo diretor estadunidense Sidney Pollack (1934 – 2008), tendo no elenco Robert Redford e Meryl Streep. Mas o que, neste momento, me instigou a refletir sobre essa escritora foi a leitura do seu livro Sombras na Relva (1960), com relatos sobre a relação da autora com criados e animais durante e depois das quase duas décadas – de 1914 a 1931 – em que viveu numa fazenda de café, no Quênia, então um protetorado britânico.

Embora amorosa, a percepção de Blixen sobre a África não escapa do senso colonizador. Algo que pode facilmente virar alvo de perseguições por parte de quem só consegue enxergar o passado pelas lentes da razão atual, sem se dar conta dos contextos geradores de oportunidades educativas que implicam na compreensão da evolução humana, permitindo entendimentos mais consistentes do gradiente das conquistas sociais.

Imagem1: A escritora dinamarquesa Karen Blixen (1885 – 1962) com os criados Farah, seu filho Saufe, Ali e Tumbo. Imagem 2: Casa da fazenda onde a escritora viveu entre os anos de 1924 e 1931, transformada em Museu Karen Blixen, a 10 km de Nairóbi, capital do Quênia.

Uma escritora renomada como Blixen, que precisou usar os pseudônimos masculinos Isak Dinesen e Pierre Andrezel para abrir trilhas editoriais, e que trabalhou em Berlim (1940) escrevendo para jornais sobre a condição da mulher na Alemanha nazista, deve ser condenada por sua mentalidade eurocêntrica na descrição de relações que considerava espiritualmente criativas em decorrência das desigualdades e das diferenças raciais? Claro que não. Blixen fala dessa convivência como expansão de mundos.

Ela escreve que o criado é mais fascinante do que o senhor, de quem depende. Diz que os dois formam uma unidade especial que está presente na ficção de todas as épocas. Cita exemplos que se estendem do profeta Elizeu, com seu servo Geazi, à Don Giovanni e seu criado Leporello, passando por D. Quixote e Sancho Pança e o sábio Bobo que segue o rei Lear.

Com prosa elegante e vigorosa, Karen Blixen divide humanos e animais em domésticos e selvagens, uns marcados pela respeitabilidade e outros pela decência. Havia também os que ela considerava ter as duas virtudes, como Farah Aden, o criado somali que dirigia a casa, organizava safáris e azeitava os vínculos da patroa com as comunidades locais, por conhecer bem os códigos culturais da África Oriental. Karen Blixen aborda a caça como uma expressão de sedução. Para ela, matar um leão é um ato de mútuo desejo entre duas destemidas criaturas.

Os valores que orientam as observações da autora e que evidenciam uma compreensão de que aqueles nativos muitas vezes “parecidos com tocos de carvão”, e que “têm propensão para se alongarem em coisas tristes”, precisavam das luzes europeias são elementos importantes para o entendimento dos contextos fomentadores de racismo. Apagar essa memória é o mesmo que condenar o pintor chinês e a dançarina tanzaniana que revelaram a beleza do marfim em suas telas e pulseiras, despertando o comércio de presas de elefantes.