Nos últimos minutos da roda de conversas realizada pela Biblioteca Pública do Ceará (BECE) no sábado passado (17) como parte das homenagens ao centenário da artista e mestra da cultura Nice Firmeza (1921 – 2013), o mediador Rodrigo Ribeiro perguntou qual a mensagem que a Nice poderia nos transmitir nesses tempos tão difíceis de pandemia. A minha resposta foi: A Nice é a mensagem.

Por que a Nice é a mensagem? Dos pontos em comum que o artista visual Carlos Macêdo, a historiadora Paula Machado, a gestora cultural Rachel Gadelha (responsável pelo legado do Minimuseu Firmeza) e eu colocamos nesse amoroso encontro virtual, pode-se destacar, entre tantas, sua organicidade afetiva, acolhedora, inventiva, libertária e produtora de convergências.

Em toda a sua vida a Nice foi uma inquieta e uma rompedora espirituosa de mediocridades, falsidades e negacionismos. Desenvolveu com o seu amado Estrigas (1919 – 2014) uma relação de cumplicidade e autenticidade existencial na arte e na vida, com base na relação de respeito mútuo, mesmo sendo duas pessoas tão diferentes.

Construíram juntos um lugar ecocultural, de vínculos plurais (Minimuseu Firmeza); um lugar em que ninguém saía de lá com as mãos abanando, fosse uma cheirosa flor de estrelinha no cabelo ou um buquê de flores secas de baobá. Quem frequentava ou visitava a casa-museu de Nice e Estrigas fazia algum tipo de escambo sentimental e cultural e saía de lá engrandecido.

Era impressionante a relação forte que a Nice tinha com a infância. Ela atraía meninas e meninos em suas descontraídas aulas de pintura, estruturada em uma pauta desinteressada, própria da brincadeira. Certa vez viajamos para Aracati e testemunhei o seu converseiro com amigas de infância. O encontro dela com a Dona Maricota em Canoa Quebrada não dá para descrever.

Nice Firmeza confabulando com as flores. Foto de Flávio Paiva (2009).

Nice era cheia de deambulações imaginárias, e esse vaguear cultural, lendário e histórico preponderava na sua arte de expressividade brincante, em que a presença de crianças e de cores berrantes era constante. Quando ela cantava as desventuras da Nau Catarineta (“Passava mais de ano e um dia / Que iam na volta do mar”) ou as predições da lenda da Carimbamba (“Amanhã eu vou, amanhã eu vou”), fazia aquilo tirando de dentro de si.

Bordar sem riscar antes com lápis era uma forma de pintar com linha, de colorir a vida e de dar fluidez à arte orgânica que gerava com o mundo e para o mundo. Cozinhando era a mesma coisa, um empadão de carne de caju aqui, um sorvete de sapoti ali e um doce de coco verde com seriguela-ameixa acolá. Não era diferente quando confabulava com flores e plantas ou contava histórias plenas de graça, sabedoria e espontaneidade.

Sempre chamei a casa-museu do Mondubim de ‘anticlube lírico’ porque Estrigas e Nice recebiam amigas e amigos das artes, da literatura, da educação, das ciências sociais e da política com base em um código tácito: ninguém era melhor do que o outro naquele laboratório de convivências. Por mais de 35 anos participei quase que semanalmente dessa experiência de amizade e transformação.

Dos amigos de arte e afetos, Nice e Estrigas escolheram quatro para chamar de ‘filhos adotivos’: Gilmar de Carvalho (1949 – 2021), Bené Fonteles, Carlos Macêdo e eu. Havia, no entanto, um quinto, o ferreirinho-relógio que fez o seu enorme, comprido e bem trançado ninho pendurado em um finíssimo galho do pé de pitanga, ao lado do alpendre. Quando ele estava a cantar, sacudindo a cauda lateralmente, a Nice dizia: “este também é meu filho”. A Nice é a mensagem!!!