Há lugares que param as nossas lembranças no tempo. As estações de trem costumam ser parte desses pontos de fixação do que passa em nossas vidas e nunca mais deixa de estar presente no que somos. A estação de Independência é uma dessas paragens para mim. Foi ali que, quando criança, vi meus primeiros filmes, em um telão ao ar livre. Cada espectador era convidado a levar a sua própria cadeira para as sessões de cinema promovidas pelo tenente Abner, da 2ª Companhia do IV Batalhão de Engenharia e Construção.

Outro dia cheguei à noite em Independência e resolvi passar em frente à pequena estação de trem, e vi uma cena que trouxe à tona a emoção dos meus momentos de menino apaixonado pelos filmes de bang-bang que tanto assisti naquele espaço. Enquanto me lembrava do Django carregando um caixão com uma metralhadora dentro, ao som de uma canção linda e forte, escutei a música, também linda e forte de Kiriku e a Feiticeira, exibido a uma plateia atenta aos feitos do menininho que lutou bravamente contra o mal que secou a fonte de água da sua aldeia.

Transportado para outro tempo daquele ambiente, fiquei comovido ao ver um grupo de crianças diante de uma animação de qualidade, acontecendo na hora e no dia em que a televisão dominante transmitia a final de uma de suas novelas de elevada audiência. Aquele fato ganhava mais importância ainda pela liberalidade demonstrada pelos pais, mesmo os que talvez não compreendessem muito bem a razão desse encontro, de deixar os filhos participarem de um evento social de descobertas.

A conquista de um espaço de cumplicidade para a reinvenção do olhar de crianças, atropeladas pelas circunstâncias do cotidiano de poucas perspectivas, Brasil adentro é uma vitória do compromisso e da determinação das educadoras e dos educadores que conduzem esse projeto. O encontro na estação se torna parte do filme, é uma cena integrada, um exoesqueleto estético que se movimenta frente a frente com a tela, ao sabor do vento fresco. Mais do que levar ao público infantil filmes fora do circuito da televisão e das telas dos celulares e tablets, o Cineclube Estação é fonte de lazer e ambiente de socialização raro nas cidades interioranas.

Pena que nos últimos anos um padre desalmado, que se dizia responsável pelos “bens” da paróquia, mandou meter o machado em boa parte das árvores que circundavam o prédio da estação. Alegando que o imóvel era de domínio da igreja, vendeu o espaço onde ficava a grande tela e vendeu até a área de acesso à rampa de subida para o alpendre, além de infernizar, com medidas judiciais de posse, a vida da História Viva, a instituição criada e mantida por professores locais, onde funciona o Cineclube Estação, projeto devidamente estruturado em 2010, graças ao programa Cine Mais Cultura, do Ministério da Cultura.

O professor Expedito Martins, um dos entusiasmados realizadores da ideia, conta que o Cineclube Estação é movido pela vontade que os seus organizadores têm de ofertar às crianças, adolescentes, jovens e adultos um ambiente capaz de mesclar entretenimento e reflexão, “haja vista a falta na cidade de espaços culturais onde as pessoas sejam estimuladas ao companheirismo, comprometimento, sentimento de responsabilidade e à luta para a realização de seus sonhos”.

A programação conta com filmes, documentários e animações nacionais e internacionais. A Estação Leitura tem um acervo bem razoável de produções, conseguidas através de projetos de aquisição. Além de estar ligado em mostras de cinema, o cineclube de Independência mantém parceria com o Videocamp, da produtora Maria Farinha, uma plataforma online e gratuita que possibilita a conexão com filmes de qualidade, voltados ao pensamento transformador.

Assim, o Cineclube Estação vai gratuitamente cumprindo a sua missão de oferecer alternativas de enredos e sentidos à infância e à adolescência, seus pais e educadores. As exibições são feitas em sábados alternados para um público entre 25 e 30 participantes. É louvável esse tipo de iniciativa. E com espaço de realização na estação de trem, soma-se à sua dinâmica uma simbologia de muito valor para a humanidade. Nunca devemos esquecer que a ideia de interligação em redes, hoje tão importantes nas comunicações digitais, nasceu com as redes ferroviárias, seus trilhos e malhas de conexões.

EM TEMPO:
Quem quiser contribuir de alguma forma para o funcionamento do Cineclube Estação, o contato é (85) 9.9996-9026 (Prof. Expedito), e o endereço: Rua Cícero Justino, 140 – CEP 63640-000 – Independência – Ceará.