Meu desejo era o de que este espaço do jornal pudesse inclinar para frente e para trás, tendo ao fundo um painel de espelhos refletindo projeções verticais sobre a superfície móvel, e que, nas laterais, uma banda decisiva enchesse tudo de som visual e dramático. Aí eu estaria apto a contar com mais facilidade imagética da peça Lazarus, do compositor, cantor e ator britânico David Bowie (1947 – 2016), parceria com o dramaturgo irlandês Enda Walsh, inspirada no livro O Homem que Caiu na Terra (1963), do romancista californiano Walter Tevis (1928 – 1984).

Em temporada de inauguração do aconchegante Teatro Unimed, em São Paulo, a montagem do diretor carioca Felipe Hirsch é impecável, desde o elenco até a cenografia. Faz jus à fantástica história dos últimos dias da existência de Bowie, interpretado pelo ator pernambucano Jesuíta Barbosa como se fosse Newton, o personagem alienígena de Tevis que, mesmo deslocado nas experiências do amor e angustiado com a torpeza predominante nas relações humanas, sequer conseguia morrer.

Lazarus foi produzida quando David Bowie estava com câncer terminal e decidiu que queria dar à experiência da morte um sentido de viagem de volta. Fez o mesmo ao lançar o álbum Blackstar poucos dias antes de partir; espécie de réquiem de onde saiu a música Lazarus: “Olhe aqui em cima, estou no céu (…) Larguei meu celular lá embaixo (…) Você sabe, eu estarei livre / Como aquele pássaro azul”. A concepção desses dois diálogos de prática estética do falecimento como passagem foi evocada por David Bowie do personagem bíblico homônimo que, por milagre de Jesus, retorna à vida, mesmo depois de sepultado.

Em sua vontade de permanecer vivo, diante da inevitabilidade de encerramento da existência, Bowie puxou na memória de suas composições a base para um enredo de despedida. O espetáculo foi, então, construído com dezoito sucessos de diversas fases de sua carreira de meio século, na qual publicou vinte e cinco álbuns de estúdio, incluindo Blackstar. Trata-se, portanto, de uma história com canções representativas das emoções, sentimentos, ritmos, sonhos e delírios de um artista marcado pela ousadia de ser livre.

Com personagens de cabelos alaranjados, roupas futuristas e músicas dos mais variados gêneros, David Bowie foi classificado de andrógino, multifacetado, camaleão do rock, ícone metamorfo da cultura pop e outros rótulos artísticos e sexuais. Mas nada disso o aprisionou. A doença, sim, chegou a prendê-lo diante de telas, fazendo com que ele chegasse a ver o mundo como o imigrante planetário da ficção de Tevis, protagonizado por Bowie no filme O Homem que Caiu na Terra (1976), do cineasta britânico Nicolas Roeg (1928 – 2018).

David Bowie nasceu em uma época de polarização geopolítica mundial, de rejeições entre diferenças, e encenou seu último ato no palco terreno em um tempo de exacerbação da intolerância a imigrantes, ao outro, ao que não é igual. A busca incessante de Bowie para não se deixar padronizar foi levada à exaustão, mesmo quando isso colocou em risco seu sucesso. O musical Lazarus mostra com apuro cênico as contorções fosforescentes desse ser de mente aberta e inquieta no momento em que, pouco antes de morrer, chegou perto de si e teve a sabedoria de imaginar, transformar em arte, escrever e dirigir o que faria depois da morte.