De passagem pela cidade de Santa Quitéria, a 220 km de Fortaleza, conheci certa vez um menino que morava dentro do coração de um padre. Fui até a sua casa e ele me mostrou uma coleção de miniaturas, protótipos, imagens e livros sobre trens, inclusive alguns escritos por ele depois de adulto. Aquele recanto com tantos vagões de cargas acoplados e comboios de passageiros tinha a alma de um ferrorama movido pela energia das lembranças.

Na voz pausada do Monsenhor Luís Ximenes, que à época já passava dos 60 anos, o garoto de Camocim, nascido em 1926, que morreria em Santa Quitéria no ano de 1994, contou-me que teve uma infância dentro de trens, vendo o foguista botar fogo na fornalha de Maria Fumaça e o maquinista a fazer deslumbrantes manobras.

O pai era maquinista e ele foi criado dentro das oficinas da rede ferroviária, entre as locomotivas e a escada de trilhos estirada no chão com seus degraus de dormentes. “Passa ainda por mim, tangido pelo pastor das lembranças, todo o rebanho dos apitos dos trens que emudeceram e que ouvi demais em tom magoado e longo”. Eram ecos dos galpões que ele reverenciava como catedrais.

Quando visitava Camocim e se encontrava diante do terminal ferroviário, se esbarrava consigo mesmo, com o seu fantasma transeunte pelo santuário da infância. A estação sem trem, sem a presença admirável do seu velho amigo de ferro, provocava um vazio perturbador, que ele chamava de guerra de saudade.

Tantos anos se passaram e Luís, que virara sacerdote, seguia sentindo as mágoas do trem que não sabia esconder a própria dor. Ainda escutava o apito plangente perdido no tempo, o clamor de quem se submeteu a trafegar preso a linhas fixas em favor do desenvolvimento e foi traído por uma sociedade que optou pelo transporte sobre pneus.

Inconformado com essa marginalização do trem, o poeta, misto das brincadeiras do menino com a experiência amadurecida do padre, escreveu as Queixas de um Trem: “Tenho inveja demais do caminhão / do automóvel, de tudo… Eu gostaria / de procurar a minha direção / e o meu caminho mesmo escolheria…” (Sonetos do Trem Perdido, p. 57, 1988).

Escreveu os versos em primeira pessoa porque, para ele, a poesia e o trem se confundiam. “Muitos dos encontros que tive com a poesia foram graças a uma passagem de trem, a uma curva de trem, a um apito clamoroso de um cargueiro cansado, perdido dentro da noite”. Resumia o trem como um poema lírico, monossilábico, escrito em duas linhas.

Monsenhor Ximenes via um caráter místico no ritual dos trens: “Ora, se o termo páscoa significa passagem, o trem é uma páscoa celebrada todos os dias na catedral das estações”. Era capaz de ficar parado e silencioso contemplando a procissão demorada dos trens, um carro atrás do outro, tendo a estação como templo para onde se dirige o cortejo, deixando, depois da partida, uma aura de melancolia.

Preconizava que o destino do trem seria o “patíbulo dos museus, como se fosse assim alguma ossada mecânica”. Cuidava da memória desse ícone da sua infância, transformando a ternura que tinha pelo trem de ferro em “lazer e higiene mental” no contexto de sua vida pessoal, sacerdotal e pastoral. A coleção do poeta está conservada em um museu na cidade de Santa Quitéria, onde ele trabalhou como pároco por mais de quatro décadas. Amém.