A China foi apontada como um problema para o mundo comunista da primeira metade do século XX, quando imperava a concepção proletária do socialismo. Suas pretensões de lançar mão de aspectos do capitalismo instalado na zona costeira do país e de tornar essa experiência hegemônica no movimento revolucionário internacional foram rechaçadas pelos soviéticos, que tinham o controle da situação.

Sobre esse incômodo, o pensador e político francês Roger Garaudy (1913 – 2012) escreveu o livro “O problema chinês” (Zahar, 1968), ensaio publicado pouco antes da sua expulsão do Partido Comunista, sob alegações que envolviam suas intenções supostamente contraditórias, como querer revisar os conceitos da luta de classes, abrir espaço para a espiritualidade e falar em democratização.

A linha política, então proposta pelos dirigentes chineses, suscitou muitas perguntas em Garaudy. Seria esse ‘socialismo exótico’ uma alternativa à transição para o comunismo por vias pacíficas? Por que a revolução chinesa, que inspirara formidáveis esperanças, tornara-se angustiante? Teria aquele modelo um valor universal? Era possível construir um socialismo a partir de uma sociedade pré-capitalista? A resposta estaria na própria história chinesa?

No final do século XIX os ingleses bombardearam duas vezes o litoral chinês (Guerra do Ópio), o segundo evento em aliança com a França, e, como indenização, exigiram concessões para livre comércio nos portos chineses, a infiltração territorial para saques e ocupações de terras, o direito de pilhagem das finanças do país e a cedência de Hong Kong por 99 anos (devolvido em 1997 como um dos principais centros financeiros mundiais).

aquarela do pintor chinês Mi Cunmao.

Essa intrusão provocou a criação do PCChinês (1921), uma guerra civil, a ocupação japonesa e mais guerra civil, resultando na revolução cultural que criou a República Popular da China (1949). Com a queda do Muro de Berlim (1989), que deu uma baixa mundial na ideia de socialismo, a expansão neoliberal moveu muitas corporações europeias e estadunidenses a tirarem vantagens da mão de obra barata chinesa.

A relação humilhante sofrida nos dois últimos séculos de fustigação estrangeira no país despertou a velha visão híbrida da China, que passou a ser acusada por estadunidenses e europeus de injusta por sua competitividade considerada imbatível. Agora esses países querem pegar seus empregos de volta e se esforçam desesperados para não depender da economia chinesa.

O aprendizado duro e custoso dos chineses levou-os a se tornarem a segunda maior economia do mundo. Mantendo o controle estatal, eles criaram condições para a propriedade privada, mercado de ações, acumulação pessoal de riqueza, desenvolvimento das suas próprias empresas de tecnologia digital, marketplaces, criptomoedas, aplicativos de pagamentos que dispensam taxas de operadoras e fortes investimentos em infraestrutura e expansão logística.

Enquanto isso, as lideranças do país migraram do marxismo para o confucionismo, numa tentativa de ancorar a legitimidade do Estado na lealdade da população e sua confiança na nova dialética de poder centralizado com sociedade de consumo. Fosse vivo, Garaudy talvez estivesse perguntando se, com isso, a China não teria criado um problema também para si. Esta é uma incógnita. O que se pode facilmente constatar é um “Made in China” espalhado pelo planeta. Óbvio que não é só isso. Diz a fábula que o pulo do gato nunca se ensina.