O Nonato ao qual me refiro você não vai saber quem é porque ele integra anonimamente a legião de tantos e tantos brasileiros realizadores de microfeitos louváveis nessa pandemia de Covid-19. Também não sei sobre ele nada mais do que pôde revelar um papo rápido durante um serviço que ele fez na nossa casa. No entanto, foi o suficiente para pensar que, sem pessoas como o Nonato, o País já teria perdido muito mais das quase 150 mil vidas humanas que partiram nos últimos meses em decorrência do novo coronavírus.

Ele está entre os muitos dos que sabiam da importância de ficar em casa, mas tiveram de sair para trabalhar, assumindo o risco de circulação, tomando os cuidados recomendados pelos infectologistas, sanitaristas, profissionais de saúde e autoridades responsáveis e comprometidas com o coletivo, e adotando ainda precauções próprias para não se tornarem agentes transmissores do vírus. Essa inteligência social de sobrevivência parece ter seu requinte máximo nas pessoas que pensam e fazem um dia de cada vez.

Imagem: Brasil, óleo sobre tela do artista visual catarinense Flávio Zanelatto (Kyta).

O Nonato é uma dessas pessoas. Mora em uma pequena casa alugada, que fica ao lado do cemitério de Caucaia, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza. Possui uma moto e trabalha como instalador de eletrodomésticos para uma rede nacional de lojas de departamentos. Diante da falta de condições para ficar em casa nesses tempos de pandemia, resolveu enfrentar o desafio de continuar saindo para fazer serviços, com consciência do que isso representa para si, para sua família, para a comunidade onde mora e para os clientes que atende.

Não foi fácil tomar essa decisão, mas ele não tinha outra. Era arriscar ou padecer. Todo dia, ao sair e ao chegar da lida, via entre quatro a cinco enterros sem cortejo. Decidiu que, pelo que dependesse dele, não seria infectado por esse vírus. Verificou entre os restaurantes que costuma almoçar os que estavam cumprindo as precauções para redução de transmissão da doença e passou a comer apenas em dois mais distantes, porém, mais seguros. Além de lavar as mãos com sabão e água corrente antes das refeições e de ir ao banheiro, passava álcool em gel nas mãos ao retomar o guidão da moto.

Sempre de máscara, reduziu a quantidade de atendimentos, mesmo que isso tenha representado um impacto expressivo no seu ganho. No retorno para casa, pulverizava água sanitária diluída sobre o veículo de trabalho, eliminando a possibilidade de vírus, embora a tinta da moto tenha ficado toda manchada. Antes, porém, pegava o lixo e ia deixar em um contêiner da empresa de limpeza urbana, disponibilizado em um lugar bem distante dali. Passava detergente no cabelo e no corpo e, em seguida, tomava banho completo e lavava a roupa em uma bica que montou fora de casa.

O que para muitos pode parecer exagero, para ele é sentimento de consideração com os outros. Tanto que, apesar de passar o dia em Fortaleza, deixa para fazer a feira no comércio do bairro. Também não pleiteou o auxílio emergencial do governo por entender que há outras pessoas mais necessitadas desse dinheiro. As atitudes e os gestos do Nonato demonstram o quão preparadas as pessoas estão para engajamentos coletivos, e podem ser consideradas contrapontos éticos e morais à parte privilegiada da população em situação de egoísmo social, que aproveita as vulnerabilidades sociais para ampliar a concentração da riqueza.