O autor do Manifesto Antropofágico (1928), uma das bússolas do movimento modernista brasileiro, gostava de comer com gosto a cultura do colonizador para adquirir suas qualidades no processo de construção da arte, da poesia e da literatura brasileiras. Entre tudo o que ingeriu, havia também, óbvio, alimentos. Mas do que costumava se alimentar Oswald de Andrade? Essa interrogação chegou ao seu ponto de cozimento e a resposta está à mesa.

Em um ensaio preparado com ingredientes de memória, pesquisa documental e referências bibliográficas, o historiador e documentarista Rudá K. Andrade, neto de Oswald e Patrícia Galvão (1910 – 1962), compartilha um saboroso cardápio literário com os prazeres gustativos do célebre escritor, que viveu entre os anos de 1890 e 1954. “A arte de devorar o mundo” (2021) teve sua edição viabilizada por um programa de incentivo do estado de São Paulo.

O que se come pode ser perecível, mas o ato de comer dura o tempo da cultura. Não é à toa que logo na introdução Rudá estabelece um parâmetro espirituoso de temporalidade para sua obra ser engolida: “ano 467 da Deglutição do bispo Sardinha” (p. 21). Não se sabe ao certo se os caetés realmente devoraram o sacerdote português, porém a comestibilidade das receitas do livro é de dar água na boca.

É bom dizer que não se trata de um resgate de pratos centenários para serem repetidos nos dias de hoje; o que Rudá K. Andrade traz no que ele chama de “refeição literária” são possibilidades de reexperienciação, como se quisesse espalhar o cheiro da comida que atraía o seu avô e que esteve presente na história da sua família. O livro é dedicado ao pai, Rudá Poronominare, que, ao retornar dos estudos de cinema na Itália, fazia macarrão toda noite para o jantar. O que justifica a receita “Fettuccine a Poronominare”.

Detalhe da capa do livro “A arte de devorar o mundo”, de Rudá K. Andrade. Arte de Tarsila Portella

A comida da infância de Oswald de Andrade, paulista, de mãe paraense-pernambucana com pai mineiro, que acordava pelo olfato do preparo do café, é oferecida pelo autor em apetitosas lembranças. Estaria ali umas das fontes do imaginário “pau-brasil”? Rudá conta que a primeira reminiscência do avô no dia em que conheceu o mar não foi de um peixe frito, mas de uma moela de galinha assada. Somam-se a esse tipo de recordação os doces de quermesse.

O autor vai mostrando com deliciosas palavras o quanto o repertório estético desse expoente do modernismo foi desenvolvido simultaneamente com a sua experiência gastronômica. Na adolescência, os primeiros amigos por afinidades intelectuais também tinham simpatias culinárias. “A estreia literária de Oswald teve boa parte do seu processo de criação nas mesas de estabelecimentos boêmios de São Paulo” (p. 65). Depois entraram os sabores europeus e a influência da crítica de Monteiro Lobato (1882 – 1948) às receitas de pratos com nomes em francês.

Rudá explica que “os modernistas conheciam um pouco dos pratos baianos, pois Salvador era ponto de parada nas rotas dos navios” (p. 109). Realça a firme contribuição ao movimento dada por Manuel Querino (1851 – 1923), filho de escravizados que publicou vários livros de culinária negra pós-abolição. O sabor da liberdade está na receita de “Caruru Moderno”, que leva gengibre, amendoim e azeite de dendê. Como atualização dos diálogos culturais para o exercício do que o autor chama de “poética da diversidade” (p. 170), pode-se servir “Rã Abaporu com pitanga”. E tem muito mais nessa bem temperada literatura com paladar.