O Saci Pererê e a perna invisível
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 23 de Outubro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Há tempos que eu vinha procurando algo que me ajudasse a compreender a ausência de uma das pernas do Saci Pererê. A versão mais próxima da minha aceitação era a de que ele teria sido um menino escravo que preferira perder uma das pernas a ficar por ela preso ao cativeiro. Ainda com base na parte da contribuição da cultura afro-negreira à formação do personagem, cheguei a atribuir essa amputação imaginária a uma derivação do Osaín, entidade iorubá, cuja representação lhe falta um olho, um braço e também uma perna.

Quando me pronunciei favorável à proposta da Sosaci – Sociedade dos Observadores de Saci, de uso da figura do mais nacional dos mitos populares brasileiros para mascote da Copa do Mundo de Futebol de 2014, a ser realizada no Brasil, os leitores me questionaram quanto a adequação de um personagem que não tem uma perna ser símbolo do futebol. Defendi que o Saci tem as duas pernas, sim, só que uma delas é invisível. Argumentei que todo craque que se preza tem uma perna invisível, que é a perna encantada com a qual desnorteia o adversário na hora do drible.

A justificativa teve uma boa receptividade, mas eu não fiquei satisfeito; queria encontrar mais elementos para compreender melhor o que chamei de perna invisível da cultura. O meu entendimento tinha estendido a metáfora da perna invisível do drible também para o passo do frevo, o lance da capoeira e a outros significantes relacionados a jeitos e trejeitos de lutar, dançar, jogar futebol, enfim, da aplicação de uma magia cultural que me parecia mais profunda.

Outro dia fiz uma reflexão sobre a migração da rabeca, desde o seu uso na antiga pérsia até seu emprego pelas novas bandas da música plural brasileira. Observei seu deslocamento pelo mundo árabe e sua influência no desenvolvimento dos instrumentos de cordas friccionadas com arco, que passaram a ser a base mais freqüente da música sinfônica do mundo ocidental. Mesmo sobrepujada pelo violino, seu derivado mais famoso, ela vem transitando pelo tempo e espaço com sua sonoridade rude e ardente. Cheguei à conclusão de que este é um bom exemplo de rastro da perna invisível da cultura.

Embora um pouco mais confortável eu não me conformava de não saber como se dá essa invisibilidade. Até que descobri a história de um médico inglês que sofreu um acidente numa montanha da Noruega e, após passar por uma complexa cirurgia, constata o desaparecimento psiconeurológico da perna esquerda dentro do gesso. O relato de Oliver Sacks, no livro “Com uma perna só” (Companhia das Letras, 2003), me levou a pensar que, assim como a neurociência encontra razões para esse tipo de alienação, deve existir uma neurocultura capaz de explicar os casos de simbolização do sumiço como o da perna do Saci.

O fenômeno da perna invisível da cultura estaria, assim, relacionado à essência das coisas e não à sua forma ou função. Senti que pelas páginas iniciais do livro do doutor Sacks eu me daria a chance de chegar a alguma analogia satisfatória. O autor estava sozinho na hora do acidente que danificou sua perna. A necessidade de sobrevivência o fez descer à montanha em desajeitados movimentos “astuciosos” que o organismo, o sistema nervoso, sacou do seu repertório reserva. Se estivesse sendo observado de longe, poderia parecer um saci em redemoinho de neve.

Na dinâmica cultural o feixe neural do imaginário também guarda seus recursos impensados para salvar em equações não-lineares a essência em situações de estresse. Quando a economia da massificação dá a entender que o que existe resume-se ao que ela tem para vender, ela está desnervando o músculo das manifestações artísticas e culturais que estão fora dos seus catálogos. Nessas situações, a sociedade, mesmo entorpecida pela inibição do tráfego neural, se ampara nas individualidades e no que elas têm em comum de memória, identidade pessoal e senso de pertencimento.

No período em que esteve com a perna alheada Oliver Sacks conta que ela parecia um objeto ridículo sem nenhuma relação com ele e quando fechava os olhos não tinha qualquer sensação que indicasse onde a perna estava. Não é o que parece acontecer com o Saci. O moleque tem sinestesia, o senso de movimento também conhecido como propriocepção, impulsos inconscientes e reflexivos que resultam do fato de o corpo conhecer a si mesmo.

A diferença do caso de Sacks para o do Saci é que para o primeiro, a perna estava objetivamente lá, enquanto para o segundo ela desapareceu de modo subjetivo. O fato relevante na esfera neuropsicológica foi que Sacks perdera a imagem interna, a representação da sua própria perna. Na neurologia cultural do Saci, a obliteração da representação da perna não está em um distúrbio qualquer de seu ego corporal, mas em um signo arbitrado pelo feixe neurocultural da brasilidade. Assim, não há como colocar racionalmente uma perna no Saci; desenhá-la do jeito que for. Ela precisa ser percebida na riqueza da sua invisibilidade.

A neurologia cultural, nessa minha formulação, seria a trama dos códigos, das linguagens e das expressões artísticas, na dinâmica social que se reinventa a todo instante, a despeito de ser ou não reconhecida, classificada e manipulada pelos sistemas dominantes. Independentemente das nossas deficiências perceptivas, ela movimenta a perna invisível da cultura em suas andanças clandestinas pelo território das representações culturais, produzindo assimetrias nos processos metatextuais que regem o cotidiano.

O que diferencia a neurocultura da neuropsicologia e até mesmo da “neurologia do self”, do indivíduo, do “eu” vivo, que tem experiências, como defende Oliver Sacks, é que em nenhum momento a perna invisível significa uma morte funcional. A perna do Saci desapareceu, mas não levou com ela o seu lugar. O sumiço na cultura pode ser uma imagem que deixa rastros das coisas não reveladas. E isso lhe dá sentido e existência, não para nos levar ao passado, mas para nos conduzir ao futuro em seu redemoinho simbólico. Por isso o Saci é um mito contemporâneo e transformador.

Esses pensamentos de dissolução e recriação, diante de uma suposta irrealidade material, me levam a deduzir que a perna invisível da cultura, tão bem expressado na figura do Saci, torna-se ininteligível porque toda a nossa competência interpretativa está voltada para a forma. No caso vivido por Sacks, quem diz se há ou não uma perna é a certeza do corpo, é o cérebro; enquanto no caso do Saci é a metáfora, é a conexão neural da cultura. A impressão que tenho é a de que se algum dia a ortopedia e a neurologia da imaginação conseguirem um raio-x e um eletromiograma do Saci, provarão que o seu esqueleto tem duas pernas e que em ambas existe condução nervosa.

A racionalidade urbana aprisionou o Saci na jaula do folclore reduzindo sua perna invisível a um membro fantasma de amputação referendada pelo coto do nervo da tradição. E não me parece bem assim, pois enquanto na neurociência a imagem corporal se adapta com plasticidade aos avisos da experiência, fazendo com que o tempo seja determinante na perda de lugar do membro desaparecido no córtex sensitivo, na minha hipótese de neurocultura a preservação da perna invisível do Saci no mapa cortical da brasileirice tem sido uma prova de vitalidade das fantasias mais puras dos nossos quereres.