O livro do ano para mim é o de uma autora que acreditou na infância como um princípio fundante da grandeza humana. Escreveu várias obras inspiradas diretamente na própria existência e inspiradoras do cultivo da brincadeira, da imaginação, da descoberta transgressora e inventiva do mundo.

Rônia, a filha do Bandoleiro (Companhia das Letrinhas, 2017) é uma das preciosas novelas da escritora sueca Astrid Lindgren (1907 – 2002), autora que toda criança merece ter em sua experiência de leitura, e com a qual toda mãe e todo pai se enriquece ao compartilhar suas aventuras com filhas e filhos.

A publicação é de 1981, mas só agora chega ao Brasil. Com ilustrações originais em bico de pena da ilustradora estoniana Ilon Wikland, essa é uma obra contemporânea que acontece em ambiência medieval. Os sentimentos e as emoções vividas por muitos filhos de bandidos da atualidade não são diferentes dos seus personagens.

Por mais que se desenvolva em uma família de ladrões, a cultura da infância tem os seus filtros, sua ética, seu senso de justiça e solidariedade. Isso faz com que ao perceberem certos comportamentos dos adultos, a criança não os tolere. Acontece com Rônia, que não acha reprovável o que o pai faz até saber que as pessoas assaltadas têm medo e choram ao perder coisas que se esforçaram para conseguir.

Rônia, que passa seus primeiros anos de vida convivendo somente com adultos, encontra Birk no bosque, e ficam amigos. Eles têm os mesmos onze anos e nasceram nas partes separadas da fenda de um só castelo que foi partido em dois por um raio numa noite de tempestade. Ela é filha do chefe de um bando e ele filho do chefe do outro, grupos que são inimigos há várias gerações.

Nesse cenário de ódios a literatura de Astrid Lindgren consegue colocar uma menina e um menino influindo com sensibilidade, respeito à natureza e alteridade, nos rumos do meio onde vivem. A propósito, vale dizer que na praxe da autora sueca as crianças são livres também dos estereótipos da infantilização.

Rônia e Birk fazem juntos coisas que não sabiam que sabiam fazer, inclusive negar a família para morar na floresta, numa experiência de medo e alegria, de repulsa e atração, de luta pela sobrevivência e deslumbre com as maravilhas que o bosque oferece. Refletem sobre a própria existência e descobrem que a natureza segue seus ciclos independentemente de quem está vivo ou de quem está morto.

Os momentos de desentendimento dos dois são cheios de sabedoria e pureza, como quando ela pede que Birk desapareça do bosque e ele diz que o bosque é dela o tanto que é das raposas, dos lobos, dos ursos, dos alces, das rolinhas, dos gaviões, das aranhas, das formigas, dos cavalos selvagens e dos gnomos. E mais, que todas essas criaturas são delas mesmas.

A força literária de Astrid Lindgren está na intimidade que ela, como menina do campo, desenvolveu em um ambiente de afeto, confiança e liberdade. Ao longo da narrativa repete-se o canto que a mãe de Rônia cantava para ela toda noite, uma espécie de boi da cara preta nórdico, mais ou menos assim: “Lobo selvagem / sei que estás no bosque / esperando por mim / Ê lobo cinza / me deixa dormir”.

Rônia, a filha do bandoleiro, é uma agradável obra cheia de sensações que realçam a potência transformadora da infância, inclusive quando os pais são ladrões inveterados.