A cada tempo do desenvolvimento humano, uma mesma questão desafiante se impõe quando, por decorrência das inquietações culturais, dá-se um aumento do que existe: como absorver as descobertas que mudam o sentido dos acontecimentos? Da reprodução do fogo aos dispositivos do metaverso, toda a tecnosfera é formada por inflexões de realidade desdobrada, provocadas por técnicas e tecnologias que entram em confluência até se tornarem lugar comum.

Foi assim com as expansões das realidades trazidas pela roda, pela lança, pelos sinais de fumaça, pela escrita, pela arte, pela pólvora, pelos sinalizadores de pipa, pela invenção do zero, pela máquina a vapor, pelos motores, pela lâmpada elétrica, pelas redes de transportes, pelas transmissões de sons e imagens à distância, pelas vacinas e pelo mapeamento do DNA, entre tantas outras, incluindo o sistema binário do Código Morse, as buscas sequenciais dos algoritmos, o telégrafo e os aplicativos de trocas de mensagens.

Neste início de milênio, tem sido muito debatido quais os impactos das novas tecnologias nas diversas dimensões sociais. Entendo que essa discussão deveria ser aprofundada, partindo também de como a cultura pode impactar as novas tecnologias, isto é, quais as inovações a serem feitas para que as novas tecnologias se apresentem e sejam vistas como uma tendência evolucionária que se estabeleceu, e não como coisa de outro mundo.

As práticas digitais e em rede não são mais apenas alternativas utilitárias e casuais; elas integram os novos padrões de sociabilidade e de comportamento global, como parte dos movimentos de abertura de perspectivas individuais e coletivas na transmissão de informações e na comunicação por meio das novas tecnologias. Tratar as identificações culturais nas aplicações tecnocientíficas é fundamental para a compreensão de que o ciberespaço é aqui, e de que tudo o que se passa na mente virtualizada repercute na vida social.

Talvez o maior equívoco da modernidade tenha sido a separação do ser humano da natureza. Percebo que a era digital comete erro semelhante quando trabalha com o conceito de mundo paralelo, como se descolasse a virtualidade da cultura. É que, do mesmo modo que a inteligência expande realidades, ela expande sentidos. Os avatares, por exemplo, são formas gráficas de como alguém quer ser mostrar nas telas, mas eles já estavam em representações que se estendem desde as divindades hindus até os santos católicos, passando pelas fábulas, pelo teatro de máscaras e pelos rituais carnavalescos.

A apartação tecnocientífica tem modificado as relações interpessoais no que diz respeito à indiferença com o que não está na agência individual. A sensação de que tudo pode ser resolvido, apreciado ou adquirido com um clique funciona para muitas pessoas como uma chancela moral de sacrifício do interesse comum. Por outro lado, quando os avanços científicos e a aceleração tecnológica são percebidos como corolários da cultura, a tendência é que o interesse coletivo receba a atenção da inteligência conectiva.

A culturalização das novas tecnologias digitais e em rede faz-se, portanto, necessária para a constituição de subjetividades que possam dar significado social e ambiental a esses esforços da humanidade criadora. Do contrário, a sociedade seguirá à mercê da realidade retraída, controlada basicamente pelo sistema financeiro, pela indústria da guerra e pelos serviços de entretenimento.