Enquanto a pandemia vai sendo controlada com mais pessoas vacinadas, com o uso de máscara de proteção respiratória e com o hábito de higienização das mãos, o circuito cultural orgânico de Fortaleza refloresce como brotos de arte, poesia e literatura. Associações simbólicas, referências costumeiras e novas criações vão sendo reativadas, devolvendo as pessoas espaços de fruição integral.

Nesse cenário alternativo está a Casa Sawí, um lugar de encontros voltado para a valorização de artistas da música na cidade. A conversão do espaço de morada em ambiente arejado por arte e amizade está traduzida na parede atrás do palco com a afirmação “Mar doce lar”. Isso porque a casa fica na Praia do Futuro, em rua perpendicular à avenida litorânea, à altura da barraca América do Sol.

A programação é quinzenal e tem curadoria dos músicos Danilo Guilherme e Pedro Breculê. Estive lá no sábado passado (6) para ver a apresentação de Marisol Albano e seu ‘canto pela vida’, em um retorno solo, desde que integrou os corais da ETFC (hoje IFCE) e da UFC. Ao lado de Pedro Breculê (voz e violão) e de Bianca Albano (percussão e voz), ela conduziu o sarau “Ter… ser só amor!”, com repertório de Saulo Duarte, Daniel Medina, Caetano Veloso e Rita Lee.

Antes, o jardim foi aquecido pelo próprio Danilo Guilherme (Danchá) com a participação do Marcelo Farias (Cordão do Caroá), que saudaram as flores. Ali as crianças brincam, a brisa do mar passeia, os cachorros dos vizinhos latem e a qualidade do som não é lá essas coisas, mas tudo converge para uma intimidade acolhedora. Sem contar com toques veganos da cozinha e um drink da casa que é uma delícia.

Entrada para o jardim da Casa Sawí em recorte de fotografia originalmente publicada no Facebook desse espaço que é um dos respiradouros para a recuperação da saúde social e cultural em Fortaleza.

O único susto que tomei foi quando, após ter vivenciado aqueles momentos tão bonitos, entrei no Instagram da Casa Sawí e deparei com uma conceituação contraditória ao que testemunhei. Nos posts que organizam as crenças que movem o lugar está escrito TFP, como abreviação de Tradição, Família e Propriedade. A explicação para cada uma: “Tradição: é tudo que constitui a história da tua vida; Família: é o que você carrega e protege com amor; e Propriedade: é onde você guarda os seus eternamente”.

Por tudo o que vi e ouvi na Casa Sawí, e que li sobre a sua ‘força pulsante’ de conexão, penso que esse é um daqueles equívocos que se comete por desatenção à história, e nunca por reconfiguração silenciosa de reacionarismos. A TFP foi um dos mais ferozes movimentos do ultraconservadorismo brasileiro. Era assustador ver seus defensores em marcha, com enormes estandartes medievais e megafones estridentes gritando pelas ruas: “Tradição, Família e Propriedade”.

As descrições das crenças feitas pela Casa Sawí em rede social não merecem a pecha das palavras escolhidas para sintetizá-la como sigla. No lugar de Tradição, poderia estar escrito algo como Memória: “é tudo que constitui a história da tua vida”; em vez de Família, poderia ser Comunidade: “é o que você carrega e protege com amor”; e, substituindo Propriedade, caberia Afeto: “é onde você guarda os seus eternamente”.

Essa iniciativa tem em si uma espécie de alma boêmia contemporânea, definida por leveza poética, e não por dor-de-cotovelo. É uma vivenda que ganhou nome indígena e que abre o seu jardim como um acréscimo de notável valor à vida cultural da cidade, um respiradouro para a recuperação da saúde social. O sarau da Casa Sawí flui no encontro da arte com a condição urbana em situação de exercício do bem-estar na ruína do presente.