Um talismã literário na virada do milênio
Revista Preview, nº 23, pgs. 18 e 19, dezembro de 1990

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“Há criações literárias que ficam na memória mais por sua sugestão verbal do que pelaspalavras. A cena em que Dom Quixote trava sua lança em uma hélice do moinho de vento e é jogado ao ar, ocupa poucas linhas na novela de Cervantes. Todavia, é um dos momentos mais famosos da literatura de todos os tempos.” (Ítalo Calvino)

A 11ª Bienal Internacional do Livro realizada recentemente no parque Ibirapuera, em São Paulo, assume finalmente o livro como um produto, uma tentativa de reunir mais consumidores para o mercado editorial. O organizador do evento, Ary Kuflik Benclowicz, defende a idéia de que no século 21 não dá mais para pensar em literatura como uma coisa sagrada e que o autor precisa também estar envolvido no processo de vendas. Mas foi além do entusiasmo de marketing que o livro “Seis propostas para o próximo milênio” de Ítalo Calvino (1923-1985) conseguiu,dentre os cerca de 150 mil títulos apresentados por 900 expositores, uma atenção especial como guia para futuros literatos.

Enquanto os avanços tecnológicos influenciam fortemente o comportamento das pessoas, o trabalho de Calvino propõe qualidades que devem ser preservadas na literatura para que o livro não desapareça no terceiro milênio ocidental. Independentemente das tendências de sofisticação ocorridas no mercado de conhecimento, como a informatização que colocou a Enciclopédia Britânica em disquete com aproximadamente nove milhões de palavras, mapas coloridos em animação e sistema de áudio que permite consultas até mesmo a discursos famosos originais, a receita desse escritor italiano, nascido em Cuba, cultiva temperos dos mitos e das lendas que os seres humanos guardam dentro de si como verdadeiras babás dos sonhos.

Ítalo Calvino sinaliza para o fato de que a fé na sobrevivência da palavra consiste em saber que, mesmo em um mundo fascinado pelo visual, existem aspectos das necessidades humanas que só ela, com suas características específicas, é capaz de preencher. Por isso, antes de morrer, havia escrito cinco de seis ensaios que pretendia apresentar em um ciclo de palestras na universidade norte-americana de Harvard. Leveza, rapidez, precisão, transparência, variedade e consistência formam os pontos-chave da sua proposta, posteriormente transformada em livro.

O abandono das máquinas de escrever por parte dos escritores que hoje podem produzir suas obras em microcomputadores não agride a profecia de Calvino. “As máquinas de ferro continuam existindo, mas obedecendo aos bits sem peso”, afirma o autor em seu fino texto sobre Leveza, no qual deixa clara a magia da percepção e do pensamento que faz da palavra “pedra”, por exemplo, um verso leve, e prova que o vazio é tão concreto quanto os corpos sólidos. Da mesma forma que, em Rapidez ele defende a sucessão de acontecimentos incomuns encadeados por vínculos verbais e narrativos, com relação lógica de causa e efeito. Não se trata de velocidade física, mas de algo nos moldes da técnica utilizada nas tiras diárias de HQ que normalmente provocam uma relação entre dinâmica física e mental, possibilitando conclusões fragmentadas de um todo vivido no cotidiano.

A literatura é apontada por Calvino como o principal instrumento de recuperação da linguagem exata. Com base nesta reflexão ele coloca na Precisão o caráter de fonte subvertora da chuva ininterrupta de imagens que banha o mundo. Fenômeno que chama de “fantasmagórico jogo de espelhos”. Assim, prefere lembrar que para os egípcios, o símbolo da precisão era uma pluma que servia de peso no prato da balança onde se pesavam as almas.

Mas a saída na briga da palavra com a imagem não parece para Calvino um grande problema. “É só criar um mundo depois do fim do mundo”, estimula. Essa Transparência para ele se dá quando realidades e fantasias recebem nas páginas de um livro o mesmo tratamento físico. “Uma superfície sempre igual e sempre diferente, como as dunas que dançam aos ventos do deserto”. É neste prisma que o autor reconhece também o poder da Variedade, onde se faz a conexão entre feitos, pessoas e coisas, onde se constróem mundos em “sistema de sistemas”. São essas, portanto, as principais lições de Ítalo Calvino. Tudo isso e mais uma pitada de Consistência que ele deixa em branco como que para dividir com os literatos do mundo a responsabilidade pela apuração do sabor desse alimento do espírito que ainda não cedeu lugar ao molho frio dos prazeres enlatados.