O Nordeste popular é cheio de experiências marcantes, vinculadas à vida e à religiosidade de pessoas submetidas à insuficiência de direitos e de serviços públicos. Uma dessas práticas foi a ação pastoral desenvolvida pelo bispo paraibano Dom Fragoso (1920 – 2006) entre os anos de 1964 e 1988 na Diocese de Crateús. Sua mensagem e significado estão na base do livro “Dom Fragoso e Padre Alfredinho – Entre nós” (Plebeu, 2020) em forma de homenagem pelo centenário dos dois. O padre franco-suíço Frédy Kunz, o Alfredinho (1920 – 2000), que viveu como pobre a sua evangelização, teve uma passagem nesse processo de justa esperança.

A história da ação de Dom Fragoso junto às famílias agricultoras sem-terra, com atenção especial à marginalização de indígenas, negros e mulheres, sempre me inspira. No livro Código Aberto (Cortez Editora, 2019), conto de quando o entrevistei: “Com voz de timbre grave e sereno e gestos humildes e firmes, ele falou de como encorajava o sertanejo a acreditar em Jesus Cristo” (p. 427). A matéria, intitulada “Dom Fragoso e a igreja de ação libertária”, foi publicada no Segundo Caderno (hoje Vida&Arte), do jornal O Povo (31/07/1988, pp. 4 e 5).

Flávio Paiva e Dom Fragoso em Crateús (1988). Foto de Alcides Freire.

Toda vez que deparo com esse assunto, lembro-me de que essa entrevista começou a ser elaborada muitos anos antes, quando eu era criança e morava em Independência, município que, juntamente com mais de uma dezena de outros do Sertão dos Inhamuns, da Serra Grande e do Vale do Poti, integra a Diocese de Crateús. Guardo comigo a lembrança de ver Dom Fragoso conversando com as pessoas nas ruas. Ele chamava a minha atenção por sua serenidade incisiva.

A obra de compartilhamento social instigada por Dom Fragoso tinha a espiritualidade como parte da vida cotidiana, e a vida cotidiana como parte da espiritualidade. Era uma ação pastoral essencialmente sertaneja, voltada para a formação crítica e para que as pessoas pensassem suas vidas percebendo valor umas nas outras e em si mesmas; de modo que tivessem fé em Deus como decorrência da fé em si e nos vínculos comunitários.

Era impactante como nessa simplicidade os conflitos se desnudavam, como as relações de dominado e dominador eram clareadas a partir dos contatos e dos acontecimentos sociais e das formas de lidar com a natureza. O trabalho, a terra e a espiritualidade eram abordados como fonte e extensão de seres coletivos encurralados em uma cultura do ciclo do gado, do coronel, da concentração fundiária e de poder.

Com paciência ele promovia a compreensão de que as pessoas do campo deveriam usufruir da biodiversidade da caatinga, das suas belezas áridas e, consequentemente, da riqueza que produziam. Dom Fragoso cuidava da existência, do ser humano em luta para escapar da exploração, mas também pelo direito à liberdade de viver em paz.

Na minha adolescência, participei de várias atividades promovidas pela evangelização de Dom Fragoso, refletindo e cantando “Fica mal com Deus / Quem não sabe dar / Fica mal comigo / Quem não sabe amar” (Geraldo Vandré) e lendo obras que contribuíam para a extensão do olhar local e continental, como “As veias abertas da América Latina” (Eduardo Galeano). O que mais aprendi nessa vivência foi que a emancipação é um processo lento, que atravessa gerações. A ansiedade é um passo para a derrota. Toda grande mudança requer um tempo de consciência, de construção da memória dos avanços.