Ensaio publicado no livro “Anel de Barbante: Ensaios de Cultura e Cidadania”
Fortaleza Omni, 2005

Ensaio em PDF

Página 85 da publicação

No guia de endereçamento postal brasileiro é surpreendente a quantidade de vezes que aparece o nome do Padre Cícero. Oficialmente são cerca de uma centena logradouros em mais de 50 localidades de 20 estados. Informalmente, não dá para imaginar. Estabelecimentos comerciais que fizeram dele promissoras marcas de fantasia tornaram-se incontáveis em todo o país. Bastante significativo também é o número de produtos que carregam sua grife entre vinhos, fogos de artifício e pomadas curativas. Ora como foco central, ora como pano de fundo, nem se conta a quantidade de artigos religiosos, temas em cerâmica, talhas, gravuras, bordados, pinturas populares, cordéis, livros, ensaios, biografias, filmes e músicas que, de forma dispersa, alimentam essa trama.

A fonte de onde emana toda essa mística tem endereço, nome e lugar definido no mapa do Ceará. Chama-se Juazeiro do Norte e, mais dia menos dia, acabará sendo chamada de Juazeiro do Padre Cícero. Ele inventou aquele lugar e ali juntou todo o ethos nordestino para depois espalhar. Sua estátua de 25 metros no alto do Horto, o ponto mais elevado da região, só falta mesmo é ser pintada com as cores originais para, como ele, fugir das convenções da perspectiva clássica. Os romeiros iriam delirar com

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aquele Padim Ciço enorme, dá mesma cor do que cada um preferencialmente gosta de adorar em casa.

Tomo a liberdade de dizer que a estatueta colorida é a preferida dos devotos do Padre Cícero um tanto por intuição, mas igualmente por ter feito algumas investigações nesse sentido. A mais contundente de todas foi certa vez quando alguns amigos e eu seguíamos de Quixadá para Fortaleza e, ao passar no girador da saída da cidade dos monólitos, tomamos o rumo errado e acabamos nos encontrando em Ibicuitinga. Como a noite já estava mesmo perdida paramos em uma ponto meio mercearia, meio bodega, para beber, merendar e conversar apreciando o vento Aracati. Na parede, por trás do balcão, havia uma imagem do Padre Cícero, da cor do gesso. Perguntei à senhora que nos atendia, qual a razão dela ter naquele pequeno pedestal a estatueta branca. Ela respondeu que fora um presente. Voltei a indagar se ela fosse pessoalmente comprar uma estatueta daquelas, lá em Juazeiro, qual das duas ela compraria. E a senhora respondeu sem titubear: “Compraria a verdadeira, claro!”. Depois desse dia, fiquei mais convicto. E com testemunhas.

A imagem “verdadeira” do Padre Cícero guarda em seu todo a significação do Juazeiro e vice-versa. Ambos sintetizam esforços de vida e morte nas brenhas nordestinas. Como objeto, traduz à primeira vista uma pulsão civilizatória substancial e vigorosa. Dentro da mistura de pureza com sagacidade e de ingenuidade com inspiração vital, do balaio cultural caririense, borbulha toda uma expressão popular em torno da imagem kitsch da estatueta de Cícero Romão. É o verde rosa no samba da Mangueira; a fragilidade anoréxica da boneca Barbie; o chapéu de fruteiras da Carmem Miranda (1909 – 1955) e o pingüim de geladeira perambulando pelas nossas frestas de cores ácidas tinindo ao sol dos trópicos.

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Nos inumeráveis oratórios dos lares nordestinos, a estatueta do Padre Cícero confunde-se nas fragrâncias dos bailes perfumados. O perfume das pétalas incensa devoções. Aromatizar oratórios é um jeito popular de fazer oferendas aos santos. Vidros e mais vidros de perfume decoram funcionalmente esses nichos de adoração. Água de rosas, seiva de alfazema, lavanda… hum, que cheirinho de nordestinidade! No livro Brasilessência, no qual Renata Ashcar faz uma pequena história do perfume no mundo, existe um bom destaque para a influência da religiosidade na perfumaria brasileira. Nas ilustrações, frascos que homenageiam Iemanjá e o Padre Cícero.

Na condição de oráculo, consolidado por manifestações espontâneas de fé, Juazeiro do Padre Cícero está para o Ceará como Delfos estava para a Grécia Antiga. Cada qual com suas histórias de cabras e secas prolongadas. Na antiguidade, a formação dos governos cristãos proibiu a busca de respostas divinas nos oráculos gregos, da mesma forma que o papa Leão XIII deu um chega pra lá no “Padim Pade Ciço”, por volta do final do Século XIX. Em Delfos, o Deus Apolo tornou-se mitológico a partir de fenômenos geológicos e do estado de transe que o gás etileno provocava em uma sacerdotisa chamada Pítia. Em Juazeiro, Padre Cícero ganhou a fama de taumaturgo por conta do êxtase de uma beata chamada Maria de Araújo, em cuja boca a hóstia teria virado sangue em repetidas comunhões.

O templo de Apolo foi destruído por abalos sísmicos e o oráculo de Juazeiro sofre o tremor das nossas reticências e relutâncias culturais. O Ceará, o Nordeste e o Brasil têm um mito feito em casa, com local e data de nascimento e morte (Crato 1844 – Juazeiro 1934). Um mito que move milhões de pessoas na simbiose da crença com a política e o comércio da fé. O oráculo de Juazeiro é todo um conjunto de indutores de concentração de

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devotos, penitentes e artistas populares. Está no entorno da estátua de Cícero, na Casa dos Milagres, no museu, no memorial, no Centro de Romaria, nas tantas ruas com nomes de santos, no coração dos romeiros e no vasto espectro de expressões que levam consigo pelo mundo afora. Resiste na memória cultuada pelo milagre do seu próprio eco, varando o tempo como um incrível tropeiro noticiando de cor a grandeza da esperança de uma gente que, mesmo sofrida, prefere apostar na vida do jeito que pode.

Estética popular

Nas ruas de Juazeiro, nas lojas e nas barracas da Colina do Horto nada é mais pop e atual do que as estampas formadas pelas réplicas alinhadas da imagem do Padre Cícero. Batina, chapéu e bengala pretos, mãos e rosto em tom rosado, olhos puxados para o azul claro e cabelos brancos. Uma peça eminentemente sentimentalista que ocupa ardorosos santuários caseiros em todo o Nordeste. Quando muito, a peça era pintada com a batina branca. Após a inauguração, em 1969, da estátua sem cor do maior fenômeno da nossa cultura popular, começaram a ser vendidas alvas estatuetas que esmaecem a beleza artístico-sentimental do personagem.

Para que o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e a Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, sejam cor de cimento, neve ou com matizes esverdeados, devem existir inúmeras justificativas conceituais e técnicas. O monumento carioca nasceu por força de uma profícua visão turística e o norte-americano por conseqüência de um presente da diplomacia francesa. O do Padre Cícero, não. Foi o suor da fé que o construiu. Descorado como os outros, não combina com a sua razão de existir, pois não traduz a alma em brasa dos peregrinos e seus múltiplos significados políticos, sociais e religiosos. Pintar a estátua de Cícero Romão Batista nas suas cores autenticamente saídas da ingenuidade artesã, seria um

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ato de percepção e respeito aos valores populares, além de uma ação esteticamente revolucionária e turisticamente estratégica.

Tenho a impressão que se fosse feita uma pesquisa entre os romeiros, na qual eles pudessem livremente optar entre pintar ou não a estátua do Padre Cícero, a maioria daria preferência ao monumento colorido, como aquela senhora de Ibicuitinga, que “compraria o verdadeiro”. Não fosse esse o desejo popular, as pequenas estátuas dispostas nas praças de incontáveis cidades nordestinas seriam apenas caiadas ou de cimento natural. Mas não, cada uma preserva e ratifica as cores tradicionais do caráter popular do polêmico personagem. Dizem que todos os municípios do estado de Alagoas têm uma estatua do Padre Cícero em praça pública. É impressionante o poder telúrico exercido pelo arquétipo desse líder visionário. Os santuários particulares mais modestos, dos mais simples lares do sertão, pontuam o destino dessa gente regada a fé e trabalho duro.

Juazeiro do Norte, o Cariri, o Ceará e o Nordeste brasileiro poderiam por à prova a diferença da sua geografia humana, aproveitando melhor o sotaque do potencial carismático do Padre Cícero. Deixá-lo solitário com as multidões de fiéis que o rodeiam ou entregue ao silêncio de apuradas pesquisas acadêmicas e centenas de publicações dispersas, é muito pouco para o tamanho dessa história. Sua força pode ir mais além da tecedura tradicional. A solidez da admiração a esse mito, sugere novos olhares, novos holofotes e novo momento evolutivo na relação do santo popular com o povo que o canonizou. Urgem algumas incidências de luz que não afetem a fé e possam multiplicar a herança e os benefícios adicionais contidos nessa imagem emblemática de indiscutível onipresença na castigada região nordestina.

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Padre Cícero anteviu o processo de desertificação que se alastra de maneira assustadora pelo semi-árido brasileiro. Tratava de educar as pessoas para que revertessem a situação climática da caatinga enquanto havia tempo. Chegou a organizar uma certa doutrina na tentativa de instruir seus devotos para o desenvolvimento de uma consciência ambiental. Enunciava que as pessoas parassem de cortar as árvores e de caçar os animais selvagens; que não continuassem mais com as tradicionais queimadas; que fizessem manejo da criação a fim de deixar o pasto descansar; que evitassem erosão não plantando roçado vertical nas serras; que em toda casa fosse feita uma cisterna para armazenar a água das chuvas; que os riachos fossem represados de cem em cem metros para abastecer o lençol freático; que aproveitassem as qualidades das plantas da caatinga para o convívio com a seca; e que todo dia plantassem qualquer pé de árvore. Alertava que se esses preceitos não fossem obedecidos, dentro de pouco tempo o sertão todo viraria um grande deserto.

Um lugar como o Cariri, localizado no centro geográfico do Nordeste, deveria esbanjar projetos de cluster de cultura popular. Seduzidos pela figura mística do Padre Cícero, contingentes e mais contingentes de romeiros levaram ao longo de décadas cada célula do exuberante tecido cultural nordestino para fazer de Juazeiro a síntese de um mundo perverso e encantador. A indústria do milagre, inspirada no caso da hóstia consagrada que, em 1889, teria virado sangue na boca da beata Maria de Araújo, proporcionou o florescer de expressões culturais berrantes e desassossegadas. Não desmerecendo as demais riquezas da região, o diferencial competitivo mais considerável do Cariri é sua cultura popular.

A busca por respostas divinas, perpetuada nas romarias movidas pela força da fé no Padre Cícero, indica aspectos instigadores de uma civilização cujo conteúdo é muito maior do que a discussão existente sobre o seu valor. Nada é mais natural do que a alteração de hábitos e padrões de desejos desenhados pelo tempo. O modo de vida das pessoas merece o impulso transformador da existência. Quem é vazio, recebe sem pestanejar os alhos e bugalhos dos modismos, mas quem tem tutano cultural não pode deixar de ser osso duro de roer. A química da modernidade não deve macular a arte cotidiana da diferença. A fragrância das ruas de Juazeiro tem erva-doce na sua ventilação informal e trágica e isso não pode ser desprezado.

Ao fundar Juazeiro do Norte e ter sido o seu primeiro prefeito, de 1914 a 1927, o Padre Cícero proporcionou o encontro da diversidade nordestina no Cariri, como um pêndulo de comunhão e, ao mesmo tempo, uma plataforma de difusão cultural. Em sua essência Juazeiro é um ex-voto polimorfo coletivo. Para a própria cidade e para o mundo é uma formalização de promessa cumprida. Jamais se deveria, portanto, abdicar desse intenso e renovado processo de efervescência humana. Mas o que se percebe são

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manifestações populares tratadas como apêndice de negócios turísticos, quando na verdade o maior insumo para a produção do desenvolvimento da região está na botija cultural deixada a céu aberto pela presença realizadora do Padre Cícero.

É incompreensível a ausência de um projeto capaz de sacudir o vastíssimo patrimônio imaterial caririense, ao ponto de torná-lo referência internacional de cultura popular. Há tempos defendo publicamente que o Ceará deveria ter naquela região pelo menos um evento arrebatador nesse sentido. Artistas do mundo inteiro marcariam um encontro de estilos multiétnicos para celebrar a beleza e a força da arte popular. A cobertura espontânea da mídia nacional e estrangeira repicaria todo o vigor das nossas bandas cabaçais, literatura de cordel, cantorias, artesanato em couro, madeira e argila, do encanto florestal do Araripe, da reserva fossilífera de Santana, do trinado poético de Patativa do Assaré (1909 – 2002) e do culto ao Padre Cícero, revitalizando o comércio, incentivando o turismo e gerando renda com maior capilaridade.

Além do espetáculo das feiras, peregrinações e festas religiosas, com as conseqüentes características sagradas e profanas da religiosidade popular, Juazeiro não conta com uma emulação estruturada do fenômeno social, cultural e político relativo ao mito nordestino. Com muito esforço, a Diocese do Crato e a Universidade Regional do Cariri têm promovido um Simpósio Internacional acadêmico sobre o patriarca dos romeiros, com debates, shows e exposições.

O Cariri é uma mistura de altar e de oficina, de reza e trabalho, como pregava Cícero Romão. A região foi ecologicamente contemplada pela Floresta Nacional da Chapada do Araripe e é beneficiária de um extraordinário vale assinalado por fertilidade e abundância. Na ação política, é terra de insurgências, de exem-

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plares movimentações que passam pela participação do Ceará na Confederação do Equador, pelos movimentos de derrubada do governo da província cearense, de incursões pela vida comunitária livre e pela presente figura de Lampião, nos épicos cangaços. Foi nesse cenário de contradições que o Padre Cícero forjou dignidade à miséria e semeou a sua frondosa mitificação.

Na condição de elemento essencial da fundação do espírito caririense, Cícero usou o binômio política-religião como instrumento para o desenvolvimento regional. Por sua pujança econômica o Cariri chegou a ser conhecido como o “Celeiro do Ceará”. Uma economia aquecida pelo poder da fé. Experiências de vivência comunitária entre lavradores, como a desenvolvida na primeira metade do século passado no sítio Caldeirão sob a liderança do beato José Lourenço (1872 – 1946), que era um seguidor do Padre Cícero, foram literalmente destruídas sob a acusação de tentativa de comunismo. Quando, a bem da verdade, não passavam de embriões de sócio-economia solidária, geradores de uma crise de mão-de-obra no Cariri. Muitos dos trabalhadores rurais passaram a deixar as fazendas em opção pela vida em comunidade.

Com genialidade, poder, crença e encantamento, o Padre Cícero foi ousado na valorização do ecumenismo, na opção da igreja pelos pobres, no empreendedorismo informal e no tratamento das questões do meio-ambiente. Mas a região do Cariri entra no Século XXI com necessidade de retomar o seu prestígio, abalado na segunda metade do século passado. No final dos anos 90, chegou a ensaiar um movimento separatista como forma de conquistar a atenção do governo cearense, que se voltava preferencialmente para os interesses industriais no entorno de Fortaleza.

Diante de exemplos assim, percebe-se que o espírito caririense não tem por que ficar vagando à toa. Urge chamar o Padre

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Cícero, pintar o Padre Cícero, enfim, incluir o Padre Cícero na lista dos bens imateriais brasileiros. Está na hora de usufruir do poder do mito. Nós, cearenses, nordestinos e brasileiros temos desperdiçado essa oportunidade. O que seria de Fátima, sem as pregações de Nossa Senhora; de Assis, sem as declarações de amor à Natureza de São Francisco; e de Pádua, sem o casamenteiro Santo Antônio? O futuro de Juazeiro, do Cariri, dependerá da compreensão que tivermos do fenômeno Padre Cícero e da mobilização que formos capazes de fazer para redimensioná-lo sem roubar-lhe a essência insurgente. O Ceará e o Nordeste têm essa responsabilidade. É crucial para o fortalecimento da região.

Quando penso na pintura do Padre Cícero, nas cores verdadeiras, penso em uma atitude simples capaz de mostrar que nada pode ser mais moderno e impactante do que a estátua de um santo popular, colorida a rigor, no alto de uma colina no interior nordestino. Em 1999, quando publiquei pela primeira vez essa idéia, tomando como gancho os 30 anos de construção da estátua, a Rádio O Povo abriu o microfone para esse debate e foi incrível como os populares que ligaram concordavam com a idéia de pintar a estátua. Os arquitetos ouvidos pela rádio foram contra, acharam sem sentido. Os fotógrafos para comentaram que com a batina preta o Padre Cícero do Horto ficaria mais difícil de fotografar durante a noite. Acredito que tudo isso pode muito bem ser resolvido com uma iluminação adequada. A questão não é técnica, mas sim de determinação da cearensidade.

Patrimônio imaterial

Pode até parecer devaneio de algum sonho errante, mas felizmente tornou-se verdade a existência de mobilizações em favor do registro oficial de bens imateriais genuinamente brasileiros, iniciando-se portanto o aprendizado da auto-descoberta do país.

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O Decreto 3551, que institui a autenticação do nosso patrimônio intangível, vem desencadeando os primeiros efeitos de um longo processo composto de percepção e empenho dos que acreditam na força e na importância dos valores culturais do Brasil.

Os projetos focados nessa riqueza e destinados ao tombamento, por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, começam a surgir e a empolgar pela dimensão espiritual dos seus significados. As badaladas dos sinos de São João del Rey, o queijo mineiro, as panelas de barro das moquecas capixabas e a expressão religiosa paraense do Círio de Nazaré, constituem os bens prestes a inaugurar os livros de registros dos tesouros da brasilidade. Cada candidato precisa ser patrocinado por seu respectivo Estado, sem necessariamente depender dos órgãos oficiais para isso. A provocação para a instauração do processo pode ser feita através de sociedades e associações civis.

A ebulição cultural deixada pelo Padre Cícero a partir dos grotões caririenses é o maior e mais consistente bem intangível do patrimônio imaterial cearense. Convencido desse valor e ao tomar conhecimento da possibilidade de tombamento do patrimônio intangível brasileiro escrevi, em 2001, outro artigo sugerindo esse reconhecimento formal da figura mítica de Cícero Romão. Além de fazer justiça a um fenômeno social e cultural sem paralelo no Brasil, o tombamento do mito dos romeiros nordestinos resultaria em grande avanço para melhor aproveitamento do seu potencial de catálise.

Dentre as manifestações que recebi apoiando a idéia, uma correspondência do então senador Lúcio Alcântara foi bastante contundente e objetiva: “Baseado em sua sugestão, encaminhei expedientes ao Secretário de Cultura do Ceará, jornalista Nilton Almeida, sugerindo a elaboração de uma proposta para ser remetida

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ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, e ao dr. Carlos Henrique Heck, presidente do Instituto, solicitando apoio ao projeto”. O registro no IPHAN tem como referência a “continuidade histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira”.

A classificação dos bens simbólicos conta inicialmente com quatro livros de registros: o Livro dos Saberes, o Livro das Celebrações, o Livro das Formas de Expressão e o Livros dos Lugares. Entre contradições religiosas, controvérsias políticas, e muito conteúdo de geografia humana, o legado imaterial do Padre Cícero tem essência para todos eles. A ambiência cultural da sua obra possibilitou desde a proliferação da estética de visão fantástica, retratada na literatura de cordel, à ética severa e honrosa da fé, patenteada nos ex-votos. Um mundo de respostas e indagações, misturado na golda do sentido da vida e da morte no cangaço e na evocação por verdes algarobais em plena caatinga. Defendi que tombar o “Padim Ciço Romão” é jogar luz nos “modos de fazer”, nas maneiras de se manifestar e nos “espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas” da gente nordestina.

Como o Decreto Federal prevê a abertura de outros livros para a inscrição de bens imateriais do patrimônio cultural brasileiro, que não se enquadrem nos livros já definidos, propus na época a abertura de um Livro das Personalidades Mitificadas, no qual seria assinalado o nome do Padre Cícero Romão Batista (1844 – 1934). Esse livro poderia estabelecer, nos seus critérios de seleção, um período mínimo de cinqüenta anos post mortem, como teste de resistência de conceito na cultura popular. No futuro, quem sabe, poderiam estar em suas páginas de Luiz Gonzaga (1912 – 1989) a Pelé como entidades brasileiras de domínio público.

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Para mim foi uma surpresa boa quando tempos depois li no Diário do Nordeste, edição do dia 11 de agosto de 2004, que o IPHAN iniciara o processo de registro da região do Cariri no Livro dos Lugares. A matéria aparentemente não cita nada do Padre Cícero, mas fala das peculiaridades originalmente ricas dessa área de confluência de culturas indiscutivelmente ancorada em seu mito. Na reportagem, o reitor da Universidade Regional do Cariri, André Herzog, usa da razão para dizer que a região em si é tão rica “que era necessário proteger não só uma ou outra manifestação isolada, mas todas elas”. Que seja feito o que der, da maneira que for possível. Embora, como Galileu Galilei (1564-1642) falou baixinho “ainda assim, se move” – reforçando que a terra rodava em torno do sol e não o contrário, para escapar da fogueira da Inquisição – valorizo o esforço das instâncias competentes, mas continuo inclinado à evidência popular de que a rotação do Cariri se dá em torno do Padre Cícero.

A grandeza intocável do Padre Cícero e os benefícios da compreensão do seu valor, como ícone de uma gente, podem influenciar significativamente o desenvolvimento do Ceará. Imagem por imagem o seu conceito é bem constituído e cheio de razões viscerais para ser trabalhado estrategicamente. A questão do Padre Cícero faz parte da hagiografia de uma nação que precisa se encontrar em suas expressões mais originais.

Cercado de controvérsias, de polêmicas e de versões fantasiosas, seu universo tem a magia da trama cinematográfica. Basta imaginar que para defender o Padre Cícero da fúria do Estado, centenas de mulheres viraram noites com lamparinas clareando o trabalho dos homens na cavação de trincheiras de mais de vinte quilômetros em torno de Juazeiro, em um episódio que ficou conhecido como “O Círculo da Mãe de Deus”. Foi em 1913, quando o tenente-coronel Franco Rabelo (1851 – ????) governava o Ceará

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e prometeu arrancar a cabeça de Cícero e levá-la para a capital na ponta de uma estaca, mas as tropas oficiais foram derrotadas com a participação dos romeiros.

Se eu fosse arriscar um dos segredos de atração no Padre Cícero, diria que era a sua capacidade de produzir breves regras do jogo a cada situação que conduzia. Foi assim quando defendeu que toda casa deveria ter uma oficina e um altar; com os preceitos ecológicos e por ocasião da segunda fase da Sedição de Juazeiro (1914), quando a fome tornava crítico o estado aguerrido da jagunçada. Antes de consentir com a prática de saques, ele abençoou seus guerrilheiros e repassou oito pontos éticos e táticos, dentre os quais vale destacar: não desperdiçar cartuchos; penetrar lentamente na cidade, dando tempo às famílias de fugirem; não perseguir os fugitivos; não tirar o alheio, apossando-se apenas de alimentação e munição e não destruir casas nem matar pessoas fora de combate (*).

(*) BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. O movimento religioso de Juazeiro do Norte – Padre Cícero e o fenômeno do Caldeirão. História do Ceará. Org. Simone Souza. Edições Demócrito Rocha, p. 270, Fortaleza-CE. 1989.

Padre Cícero é filho do Brasil de dentro e fez do Cariri o lócus da mais autêntica cultura popular nordestina. Essa é uma botija que ele deixou para ser desenterrada quando tivermos capacidade de compreender, sem preconceitos, a dimensão do seu legado cultural que agitou meio mundo e assombrou o Vaticano. Pelo tamanho da catálise que provocou, celebrizou-se tempo afora e, sete décadas depois da sua morte, foi eleito o Cearense do Século, numa promoção da Rede Globo de televisão, através do Sistema Verde Mares. A vitalidade do Padre Cícero continua interferindo no cotidiano das pessoas que o veneram por motivos históricos, culturais, políticos e religiosos. Atributos que fazem dele um bem imaterial fundador do Brasil.

No início do mês de dezembro de 2004 houve um episódio bastante emblemático com relação à força invisível que cuida do

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patrimônio popular do Padre Cícero. O proprietário de um hotel fazenda, localizado no Km 58 da BR 116, no município de Chorozinho-CE, resolveu vender cachaça em um vasilhame no formato da estátua de Cícero. A priori não pareceria nada demais, considerando que existe vinho com a marca do Santo de Juazeiro do Norte. Mas, além de ser aguardente, o restaurante do hotel, que se chama Adega Casa Grande, é conhecido por vender cachaça, licor e coquetel em pequenos recipientes com os mais variados nomes chulos, tais como “Nabundinha”, “Picadura”, “Xixi de virgem”, “Pau do índio”, “Xoxotinha” e “Oração dos Cornos”.

Para agravar a situação a pequena garrafa de vidro em tom escuro é fechada com uma tampa de plástico no formato da cabeça de Cícero, modelada na cor café com leite, com chapéu preto. Acontece que para beber a cachaça torna-se necessário desenroscar a cabeça, apartando-a do corpo. E foi sob essa alegação que dois vereadores de Juazeiro promoveram um debate na Câmara Municipal com a finalidade de proibir a venda da estatueta. Eles souberam da existência do produto, considerado sacrilégio, ao parar para lanchar na Adega Casa Grande em uma viagem que fizeram a Fortaleza.

Compraram duas garrafinhas e levaram para o caldeirão religionário do Cariri. A notícia se espalhou rapidamente na Região, causando revolta entre devotos e nos setores religiosos. A repercussão ganhou espaço na televisão, através da sucursal da TV Verdes Mares, que catapultou o fato para todo o Brasil nas ondas do Jornal da TV Globo. A Câmara Municipal de Chorozinho também foi acionada e fez uma intervenção direta para a suspensão imediata da venda da cachaça. O que parecia uma fabricação própria do restaurante não passava, a bem da verdade, de um frasco, com 15cm de altura, em cuja base estava escrito em relevo e caixa alta: P. CICERO. O proprietário havia comprado uma quantidade na

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Perfumaria Moreira, localizada na rua Pedro I, 738, em Fortaleza, e colocado cachaça no lugar de perfume. Mas, em se tratando da ética popular que toma conta da imagem do Padre Cícero, nada está absolutamente incólume.

Não há razão para ficarmos alheios a essa que é a mais aglutinadora das nossas manifestações. Não dá para entender a não existência de pelo menos um lugar de destaque para Cícero Romão em Fortaleza. O Seminário da Prainha, onde ele estudou, fica no mesmo ponto de junção do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura e da Praça do Cristo Redentor – com o Museu do Maracatu e o Teatro São José – e poderia ser um dinâmico espaço de impulsão, na capital cearense, de toda a gama cultural enleada na vida e na obra do polêmico santo dos romeiros nordestinos. A herança do Padre Cícero necessita da movimentação compartilhada das entidades públicas, da iniciativa privada e da sociedade civil, a fim de ser reconhecida como mola propulsora do desenvolvimento integrado do Brasil. Cabe particularmente ao Estado agir como co-responsável para influir na estrutura de produção, difusão e distribuição dos bens culturais gerados na cadeia sócio-econômica da cultura.

A explicitação desses valores gera efeitos pedagógicos, iluminadores, de auto-referência e, conseqüentemente, mercadológico para os bens culturais renováveis, como condição para o desenvolvimento de longo prazo. Tirar a cultura local da indiferença não é, portanto, uma tarefa fácil. Com o Padre Cícero na condição de eixo simbólico organizador de uma visão estratégica ampla, há como territorializar a cultura sem, no entanto, torná-la isolada do mundo. Pelo contrário, tornando-a alavanca da auto-estima e do fortalecimento dos traços culturais que despertam curiosidades e movimentações entre as pessoas dos mais diversos lugares.