Ensaio publicado no livro “Rumos_Brasil da Música: pensamentos e reflexões”
São Paulo: Itaú Cultural, 2006

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No âmbito da justiça é comum ouvir dizer que o que não está nos autos não existe. Com o mundo da música acontece algo semelhante, pois o som que não ecoa pelos canais de exibição tende a ser considerado inexistente. Isso faz com que em julgamento cotidiano os mais desatentos reclamem da qualidade da música produzida atualmente a partir das raízes e antenas do Brasil. Mas as manifestações artísticas não dependem de qualquer sentença para existirem. Principalmente as mais autênticas, que compõem o conjunto de respostas emocionais indispensáveis à produção cultural comunitária. Neste aspecto, de jegue, jangada ou a jato, a nossa diversidade inventiva está de vento em popa.

As limitações de acesso à vasta e espetacular produção contemporânea da música plural brasileira acabam condenando o lado encoberto pelo aparente e criando parâmetros desfavoráveis para a interpretação da nossa realidade musical. Essa deformação de cenário promove efeitos danosos como, por exemplo, os que dão a sensação de que já fizemos o que de bom poderíamos fazer. Lesadas por esse tipo de dedução falaciosa as pessoas acabam deixando inibir o desejo da descoberta. E não há como sair dessa enrascada conflituosa se não aprendermos a entender os cruzamentos de ciclos e a escutar também o que se produz hoje fugindo da lembrança idealizada nos modelos midiaticamente vitoriosos. Inclusive do samba de Vargas e da bossa-nova de Juscelino. Lembro de ter escutado o Ivan Lins dizer certa vez em um show no Parque do Cocó, em Fortaleza, que até hino a gente faz bonito. Disse isso após cantar de forma vibrante o Hino da Bandeira (Francisco Braga/Olavo Bilac): “Salve lindo pendão da esperança…”.

No livro Auxílio Luxuoso [São Paulo: Annablume, 2003] que trata do samba como símbolo nacional, da geração Noel Rosa e a indústria cultural, o professor Wander Frota, da Universidade Federal do Piauí, defende que paremos com esse negócio de “história semi-oficial da MPB”. Em contraponto, ele sugere que deveríamos começar contar a ”História Brasileira da Música Popular”. Talvez algo como a trilha aberta pela Escola de Música de Brasília, na qual o conceito de musicalização se afasta da camisa-de-força dos tradicionais conservatórios para poder cuidar da música brasileira, e não necessariamente da música no Brasil. Gosto dessas inversões porque elas colocam a música na esfera do desenvolvimento sócio-cultural do País e subvertem a lógica dominante centrada no Sudeste, segundo a qual o que parte das plataformas do Rio de Janeiro e de São Paulo tem caráter nacional, enquanto o resto é isolado em campos estéticos de concentração regional.

As opiniões emitidas como commodities por boa parte dos historiadores e jornalistas especializados, que, comumente, reduzem a visão da música brasileira a seus centros de convivência, fluem como pareceres de juízes da corte da cultura nacional. Tal idiossincrasia torna vulnerável a disposição de nos ouvirmos com os nossos próprios ouvidos, de buscarmos a audição do que nos descreve e de nos encontrarmos no que somos e no que queremos ser. O ladrilho que nos distingue nas circunstâncias matriciais da nossa história carece de aprendizado civilizatório para ser percebido em sua dimensão futurista e na valorização do seu

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potencial mercadológico. Se por conta do predomínio da consciência de rodapé de alguns intelectuais bairristas ficarmos tentando subir pela escada rolante que desce, dificilmente chegaremos à altura necessária para apreciarmos a grandeza da nossa música popular.

O que nos faz bem, nada aquém, nada além, revela-se a todo instante. Mas precisamos estar preparados para perceber os sinais de translação em volta do relicário da brasilidade. Com que ouvidos nos escutamos? Esta pergunta poderia muito bem seguir conosco em constante exercício de silepse cultural, no qual a concordância sobre o que queremos ser passaria a ser balizada conforme o que somos e não segundo as regras do que dizem que poderemos ser. A música brasileira tem tudo para soltar os acordes das múltiplas forças de convergência e das contradições de uma gente que só precisa despertar mais para a noção de pluralidade na significação do seu patrimônio imaterial. Pode parecer contraditório e ao mesmo tempo demasiadamente óbvio, mas a valorização da diversidade só é possível quando se afirmam as semelhanças.

O jogo é bruto e as corporações transnacionais que controlam o mercado da música não têm qualquer compromisso com a nossa biodiversidade musical. Mais do que um problema cultural, temos também uma séria questão de defesa econômica a resolver. E o Brasil possui instrumentos legais para isso. A Lei 8.884, de 11 de junho de 1994, conhecida como Lei Antitruste, está aí para ser utilizada em casos de infrações contra a ordem econômica, de desvios da função social da propriedade e de abusos na indução do consumo. São inúmeros os danos que sofremos por conta dos exageros impunes dos oligopólios estrangeiros. Some-se a essa leva de prejuízos as ações de dumping, sustentadas em fonogramas subsidiados, e toda a questão da burla aos Direitos Autorais, e teremos uma noção das causas de violação do direito de oportunidade, tanto com relação a quem produz como a quem gostaria de poder ter mais opções de escolha das músicas que quer ouvir.

A construção de uma perspectiva econômica para o tratamento dos problemas enfrentados pela música brasileira ganha nova dimensão com o crescimento da liderança do Brasil no G-20, formado por um grupo expressivo de países em desenvolvimento. O agendamento da questão da construção de regras justas e de disciplinas claras do negócio de música, dentro da multiplicidade de temas abrangidos na Organização Mundial do Comercio (OMC), seria uma grande contribuição do Brasil ao aprimoramento do sistema multilateral do comércio. É que essa problemática toda não afeta somente a nossa música. Poucos lugares do mundo estão conseguindo controlar os avanços dessa espécie de síndrome da imunodeficiência introjetada pela indústria fonográfica multinacional. Apesar do grande número de pessoas infectadas pelo vírus da mesmice e da passividade de achar que a melhor escolha é deixar de escolher, a saúde musical brasileira tem pujança para liderar uma campanha de vacinação anti-retroviral de cultura.

A competição de música no plano internacional está ligada também ao cabo-de-guerra da hegemonia cultural, sobretudo na questão do idioma. Quando caem significativamente as vendas em um país periférico, o termômetro da supremacia nos países que controlam o mercado de fonogramas acusa a necessidade de ações corretivas. A maré de pirataria proclamada no Brasil levou o governo estadunidense a nos ameaçar de retaliações comerciais. Quando essas intimidações acontecem, o governo brasileiro tem que mostrar serviço e provar que está combatendo o comércio ilegal de música. O caso não é tão grave porque, ao tirar as vantagens tarifárias do Brasil, países como os Estados Unidos acabam prejudi-

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cando as suas próprias empresas. “Dos US$ 2,5 bilhões que o Brasil exporta em produtos não-tarifados, quase um terço são de vendas que empresas norte-americanas no Brasil fazem para as suas matrizes nos EUA” [Folha de S.Paulo, 20/set./2004, p. B-6].

As discussões sobre cultura no Brasil têm suscitado olhares pelo viés econômico, mas ainda são iniciativas normalmente inclinadas às ligações específicas com programas de emprego e renda através dos quais os governos e a iniciativa privada tentam demonstrar compreensão do valor econômico da cultura e, assim, aprovar financiamentos para as suas políticas específicas. Afora alguns mapeamentos, justificativas e gráficos de custo-benefício, poucos desses esforços se convertem em práticas transformadoras. Esses métodos partem de premissas equivocadas, quando colocam os argumentos econômicos em primeiro plano. De qualquer forma são deslocamentos de padrões de conduta que sedimentam um processo de mudanças mais amplo que tem na música a sua mais destacada locomotiva. O certo é que de jegue, jangada ou a jato há uma grande movimentação de fóruns pensando em soluções que passam pela idéia de tratar o problema em câmaras setoriais, agências reguladoras, reestruturação do sistema de arrecadação e da moralização dos Direitos Autorais.

O mais honroso gesto do desejo é a construção da honestidade do querer, em seus detalhes enunciativos de grandes e indescritíveis desdobramentos. Se observarmos as músicas que escutamos cotidianamente por diferentes ângulos temporais, poderemos perceber que, quando incorremos na aparência, pouco garantimos da nossa satisfação plena. As razões da necessidade posta ao bel-prazer da indústria fonográfica questionam a realidade objetiva. E a realidade objetiva tem vibrações que partem e chegam das suas sonoridades antropológicas. Cada resultado da ação de viver depende de pequenas atitudes que tomamos, e isso faz com que os acontecimentos ocorram de uma determinada maneira e não de outra. Na nossa relação com a música é assim. Das cantigas de ninar aos réquiens, convivemos com música ao longo da nossa vida. A música é, portanto, um nutriente essencial ao nosso prazer. Se a sabedoria oriental assegura que “somos o que comemos”, considerando a música um alimento do espírito poderíamos acrescentar que “somos o que comemos e o que escutamos”.

O Brasil, em sua juventude de país miscigenado, tem uma música bem nova e vicejante. Se considerarmos a atitude política do compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864 – 1920), que defendeu a necessidade do povo brasileiro de ter acesso a músicas compostas em português, e todo o empenho do maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) na consolidação das bases de criação de uma linguagem musical brasileira, podemos observar que tudo é muito embrionário. Talvez por isso se tenha tanta facilidade de criar, recriar e combinar gêneros, estilos e ritmos neste País. Numa licença de exagero analógico, a fim de ilustrar essa extensão criativa, poderíamos dizer que, assim como as células-tronco se diferenciam por serem capazes de atender às demandas pluricelulares do nosso corpo, a Música Plural Brasileira se destaca pelo seu potencial de produzir tecido poético-sonoro para qualquer vertente do nosso organismo cultural.

Está tudo posto a nossa disposição. Cabe a quem quer que se interesse por essa riqueza se mexer para ajustar seus rumos. Não temos motivos para ficar adiando as descobertas do que queremos e temos o direito de escutar. Por trás dos insistentes apelos das músicas pagas para tocar como se fossem sucessos populares, dispomos de uma intensa produção musical, nem sempre bem concluída, mas composta de verdadeiros

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diamantes brutos a serem lapidados. O valor social, cultural e comercial do nosso acervo de composições populares merece atenção especial da sociedade. Sem acesso à informação, sem conhecimento do que se produz de bom e de bem feito por todo o País, passamos a sofrer de uma certa anorexia estética, tornando-nos presas fáceis para os esquemas caça-níqueis de produtores embusteiros.

A verdade é múltipla e, por isso, mais dia, menos dia, essa crise de significados vai ceder a nossa força mobilizadora. Sei que para uma gente educada nos princípios da caridade – que sempre exaltam o caridoso – admirar pode parecer redução de luz própria, quando reconhecemos o brilho dos outros. Mas a fartura da MPB dá para encher qualquer Ceasa da alma de música para divertimento e lazer, e de música que nos faz pensar, refletir, sonhar, vaguear por dentro de nós mesmos. Jorge Ben Jor se orgulha de nunca ter feito uma música triste; Maurício Pereira sabe que o mercado não o quer; Gilberto Gil é o Ministro da Cultura; Antônio Nóbrega deu à rabeca o status de violino brasileiro e Tom Zé, com 65 anos, continua sendo a mais jovem estrela do cenário pop underground. Dá para continuar por parágrafos inteiros citando esse tipo de inflexões. O que não dá é para entender a nossa passividade consumidora.

Amplia-se o nível de consciência cidadã e fica cada vez mais estranho o fato de o Brasil ter uma superabundância musical produtiva e, ao mesmo tempo, uma gente ruminando carência nos currais difusores da indústria fonográfica. As saídas estão por toda parte. Temos arte para emoção e razão espalhada por todo canto. Para excitar, relaxar e consolar. A nossa maior força está na “mixologia” que o fenômeno da hibridização revela. Se, como advoga Carlinhos Brown, o mestiço tem vários espíritos, somos uma nação privilegiada nessa trama. A linguagem neocatingueira do Cordel do Fogo Encantado, a house music amazônica de Eliakin Rufino, a renovação emepebê de Chico César, o rasqueado pantaneiro de Helena Meireles, a paixão elegante de Regina Machado, o tecno-zen de Laura Finocchiaro, o regionalismo cósmico de Abidoral Jamacaru, o sambajazz afro-erechinense de Elizah, a urbanidade poética de Kleber Albuquerque, a celebração afinada de Maria Rita, a quentura sanfonada de Waldonys e de Adelson Viana, a canção romântica de Eliana Printes, o canto brejeiro de Cris Aflalo, o violão candente de Manassés, a erupção cadenciada de Daúde e a performance sampapop de Vange Milliet temperam esse caldeirão de misturas energéticas.

Tão grande e viçoso assim, esse arsenal não está na linha de frente do nosso orgulho cotidiano. São “perolas aos poucos”, como bem realça uma canção do professor José Miguel Wisnik, da Universidade de São Paulo (USP). Faltam sinalizações de boa parte da nossa intelectualidade cabisbaixa e metida na esparrela da busca de atenção pelo autoflagelo. Falta percepção da nossa juventude universitária urbana, cujo coeficiente cultural está próximo de zero. Falta sensatez em alguns artistas viciados em patotas e ancorados em histórias de sucessos anacrônicos. Faltam mais políticas culturais decentes, capazes de beneficiar o interesse público e não a um ou outro obediente produtor laranja. Falta dar mais conseqüência às discussões. Falta difusão, mas não falta rima, matéria-prima.

Muitas têm sido as tentativas de salientar uma identidade sonora para o Brasil, de forma que possamos despertar da decadência do sistema musical que nos consome e controla. Artistas ligados ao movimento negro, pensaram em Música Preta Brasileira, outros andaram defendendo a Música Pop do Brasil, Música Popular Boa etc. A cantora Joyce foi mais além e andou ensaiando essa distinção com a expressão Música Popular Criativa. Nota-se, claramente, que há uma constante preocupação em manter a sigla MPB, que, de tão bem

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refinada por artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Elis Regina, Caetano Veloso, Geraldo Vandré e João do Vale, acabou virando gênero. A partir da segunda metade dos anos 1960, a sigla MPB passou a significar uma corrente de pensamento que fomentava uma conscientização da distinção da música brasileira de qualidade e se expressava no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE). Seguiu assim por todo o período de governo militar. No início dos anos 1980, com a ascensão do Brock, a MPB teve o seu leque de percepção ampliado pela mídia para toda e qualquer música feita no Brasil.

Tenho defendido o conceito de Música Plural Brasileira, que mantém o ícone da MPB e alcança todo o potencial inventivo da nossa geografia humana. Com essa preservação entendo que honramos os seus criadores que concentraram as expressões regionalistas no Sudeste, juntando-as com referências internacionais e lançando nacionalmente, no tempo dos grandes festivais, uma nova cara para a música brasileira. É bom não esquecermos desse momento de grande valorização de tudo que foi construído de Chiquinha Gonzaga a João Gilberto, passando por Luiz Gonzaga e Cartola. Acredito que, sendo o nosso maior problema a desatenção para com a riqueza desse patrimônio de recursos renováveis, a melhor forma de emularmos essa percepção é chamar a atenção para a pluralidade.

Dificilmente alguém vai querer continuar no consumo da pieguice ao descobrir que um dos maiores diferenciais positivos do Brasil é a sua efusiva e genuína variedade musical. A reversão do quadro atual pede o somatório de esforços de quem acredita que merecemos muito mais do que a mentira tocada ou cantada oferecida diariamente por muitos programas de rádio e de televisão. O saudoso compositor paulistano Itamar Assumpção (1949 – 2003) elucidou o teorema advertindo que “porcaria na cultura, tanto bate até que fura”. Itamar saiu do nosso convívio deixando uma obra única e praticamente desconhecida dos brasileiros. Vivos ou mortos, salve o talento de todos os que seguem sendo contemporâneos sem vender a alma para poder assim vender discos. A diversidade ganha corpo nas várias regiões do País e a tecnologia facilita a integração. É só a gente querer. De jegue, jangada ou a jato, existe uma luz no fim do túnel. São os faróis da Música Plural Brasileira em movimento.