Ensaio publicado no livro “Feira do Sebo”, a Feira do Sebo do Livro Infantil
Fortaleza: Centro Cultural Adolfo Caminha e Secult, 2007

Ensaio em PDF

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As histórias infantis vêm de antes da descoberta da infância, antes mesmo do livro e da literatura, e continuam brotando na natureza lúdica humana e na relação das pessoas com o mundo intangível.

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No Ocidente, as brincadeiras pelo simples prazer de brincar, como a de “esconde-esconde”, estão registradas nos vestígios gregos de mais de dois mil anos, embora a figura infantil só tenha começado a ter destaque tempos depois, na representação da estatuária barroca, no século XVII, com anjinhos de asas e seus cabelos encaracolados.

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Foi somente no século XVIII que começou a haver a compreensão de que crianças e adultos necessitam de tratamento diferentes, trajes diferentes, atenções diferentes. A infância ganhou categoria etária e as narrativas da oralidade do período medieval, que se estendeu, aproximadamente, do século V ao XV, serviram-lhes de ensinamentos. As descobertas do mundo pelos contos fantásticos também se somaram a esse repertório de fábulas. O mais conhecido exemplo dessa literatura é o Livro das Maravilhas, de Marco Polo (1254 – 1324), um aventureiro italiano que fez relatos incríveis das suas viagens pelos países asiáticos.

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Na cultura clássica, greco-romana, vigente até o século V, houve certo despertar para a valorização da leitura e da educação, embora fosse comum a prática do infanticídio. Bastava que um pai não aceitasse o nascimento de um filho, que a criança podia ser eliminada. Com a chegada da Idade Média, pouca coisa mudou no que se refere à indiferença para com as crianças. Quando muito algumas delas eram selecionadas pelos monges para serem adestradas nos mosteiros, em sistema de confinamento integral.

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A regra básica era a de não haver distinção nas formas de comportamento entre adultos e crianças. O exercício lúdico e o devaneio se davam na oralidade, por meio das piadas e mímicas dos bobos da corte, da contação de histórias e de sermões públicos, espetáculos teatrais sacros, cantos religiosos e recitais narrativos de trovadores e menestréis.

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O papel e a técnica de reprodução de textos com caracteres de barro endurecidos com resina são inovações chinesas de dois milênios atrás. Foi por intermédio dos árabes que tais invenções chegaram ao ocidente, onde o marco dessa evolução se deu com a descoberta da imprensa por Gutenberg em meados do século XV. A possibilidade de reprodução em série e de encadernação de papéis impressos deu origem ao livro. Como a imaginação era um atributo humano percebido como perigoso, por interferir na construção da consciência das pessoas sobre si e sobre o mundo, o livro

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foi acusado de ensinar às crianças a falarem do que ainda não haviam experimentado.

No mundo medieval não havia nenhuma concepção de desenvolvimento infantil, nenhuma concepção de pré-requisitos de aprendizagem seqüencial, nenhuma concepção de escolarização como preparação para o mundo adulto (POSTMAN, 2005, p. 29)

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Aí, portanto, meninos e meninas não passavam de homens e mulheres pequenos, com a infeliz diferença de não estarem aptos para o sexo nem para a guerra. Mesmo com reservas, o conhecimento organizado nos livros contribuiu de forma relevante para o entendimento de que se colocassem aqueles seres, menores de idade e ainda não aptos aos afazeres dos adultos, para aprender a ler, eles poderiam servir bem melhor às suas comunidades religiosas, culturais, sociais, territoriais e políticas. Não por seu caráter de ludicidade ou de experienciação com as letras, mas por distinção funcional, o conceito de “infância” acabou nascendo vinculado ao de “literatura infantil”.

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A presença muçulmana na península ibérica por oitocentos anos (século VIII ao XVI) trouxe para o Ocidente um mundo de sabedoria árabe, com seus tapetes voadores e cavalos alados. O mais famoso dos contos originários da tradição persa (iraniana) e indiana é As Mil e Uma Noites, cuja primeira edição na Europa foi feita em 1704. A voz de Sherazade é a voz da literatura e seu poder de reelaborar a realidade. O conto maravilhoso russo, árabe e oriental tem presença marcante da solução mágica para os problemas da vida. Nessas narrativas é comum o herói corporificar águias, ursos, cavalos e lobos, para se apoderar dos seus atributos de poder, força e habilidade instintiva.

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As histórias infantis, que já existiam na fantasia adulta, foram capturadas da oralidade por escritores de diversos países europeus, que colheram e releram os contos de fada e as fábulas gregas de Esopo, que haviam sido recontadas por Fedro na literatura romana, e os transformaram em livros. Na França, Charles Perraut (1628 – 1703) e Jean de La Fontaine (1621 – 1695); na Alemanha, os irmãos Jacob (1785 – 1863) e Wilheim (1786 – 1859) Grimm; e na Dinamarca, Hans Christian Andersen (1805 – 1875), destacam-se no conjunto de geniais recriadores dos ensinamentos e das fantasias resultantes da Antiguidade, da Idade Média e da Renascença.

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“A Raposa e as Uvas”, “O Patinho Feio”, “Os 3 Porquinhos”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Rouxinol do Imperador”, “Branca de Neve e os 7 Anões”, “A Gata Borralheira”, “O Flautista de Hamelin”, “O Pequeno Polegar”, “Barba-Azul”, “O Gato de Botas” e “O Soldadinho de Chumbo” são algumas dessas fábulas instigadoras do maravilhoso no repertório de todas as idades. A vida medieval na Europa era tão embrutecida que só restava às pessoas acreditar na imaginação. A opção que tiveram foi a de contar suas próprias histórias, fantasiar o cotidiano e passar saberes de geração a geração, séculos por séculos, até um dia chegar à Renascença (século XV e XVI), quando houve a retomada do interesse pelo saber e pela arte, em parâmetros menos teológicos e mais humanos.

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Fizeram isso com tamanha honestidade de sentimentos que, mesmo carregadas de lições de moral de uma época em histórias de príncipes, princesas, bruxas, fadas, madrastas, amas, caçadores, lenhadores, gigantes e anões, produziram o etéreo e o atemporal. Os contos de fada são uma espécie de museu do conhecimento da alma humana, que oferece curiosidades sobre a aprendizagem da vida, tendo a fantasia como parte intrínseca do real mais profundo. Neles, até a representação do feio é atraente, nas figuras das bruxas e dos vilões. O sucesso dessas narrativas deve-se ao fato de as crianças terem elementos para exercitar mentalmente o que não entendem, o que as angustia, o que as apavora.

A fixação das fábulas em textos de “Era uma vez…”, tanto ajudaram os adultos a perceber a existência diferenciada da infância, ou melhor, de como a infância elabora

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no campo da imaginação sentimentos relativos à violência sem o risco de se machucar. Essa é uma experiência que normalmente só é possível no domínio do mito, do pensamento mágico, da lenda, da fábula, do maravilhoso, do encanto. Coelho (2000) afirma que a literatura fantástica continua falando às pessoas porque fala da “verdade geral”, regida pelas paixões humanas da ambição, do amor, do ódio, da generosidade, da tolerância, da fidelidade, da traição, enfim, de sentimentos universais, o que a habilita a ser atual em circunstâncias variadas de espaço e de tempo.
 
Os romances de cavalaria, cheios de magos, atos de bravura, amor ardente e amor cortês, também de fonte medieval, têm grande presença no despertar dos adultos e no adormecer das crianças. Da saga espanhola de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes e Saavedra (1547 – 1616) à lenda celta do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, o certo é que os primeiros textos para crianças foram adaptações de narrativas orais colhidas do mundo adulto e, talvez por isso, a literatura infantil tenha ganhado, pelo olhar estreito da intelectualidade sem imaginação, a pecha de gênero secundário, nivelado ao brinquedo.

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Do século XVII em diante o mundo ocidental foi inundado de grandes obras para crianças de qualquer idade. Da Inglaterra, a humanidade ganhou As Aventuras de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe (1660 – 1731); Oliver Twist, de Charles Dickens (1812 – 1870); Alice nos País das Maravilhas, de Lewis Carroll (1832 – 1898) e Mogli, o Menino Lobo, de Rudyard Kipling (1865 – 1936). Da Irlanda, As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1667 – 1745). Da Alemanha, As aventuras do Barão de Münchausen, nas obras de G.A. Burger (1747 – 1794) e de R.E. Raspe (1736 – 1794). Da Itália, Pinóquio, de Carlo Collodi (1826 – 1890). Da França, 20 mil léguas submarinas, de Júlio Verne (1828 – 1905) e O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry (1900 – 1944). Dos Estados Unidos, As Aventuras de Huck Finn, de Mark Twain (1835 – 1910). Da Escócia, Peter Pan, de James Barrie (1860 – 1937); e do Brasil, o Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato (1882 – 1948).

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Essas são exemplos de obras fundantes da literatura infantil e juvenil universal. Quem as leu, leu parte das que vieram depois. Onde nasceram? Na inversão das leis naturais e da lógica formal do cotidiano, nas passagens inexplicáveis, na aventura, no suspense, enfim, na liberdade de interpretação da vida, que a palavra, o texto literário, oferecem como uma brincadeira ao prazer de inventar, de remodelar o real, dentro do universo de crenças e representação de cada um. A oportunidade de ler é a oportunidade de preparação para o uso criativo da linguagem e para o exercício da escolha pessoal e coletiva diante dos condicionamentos impostos pelos interesses políticos e econômicos.

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Os estudos sobre a história das culturas e o modo como elas são transmitidas entre gerações demonstram que a literatura foi o seu principal veículo (Coelho 2000, p. 16). O espaço de criação do leitor é a verdadeira mágica da literatura, do que esse leitor traz para dentro do livro e como faz de suas páginas a plataforma para novas curiosidades e descobertas. O livro é o dínamo da imaginação. Ao defender o papel insubstituível da literatura poética e fantástica, Jacqueline Held fala da necessidade de uma criança que seja capaz de inventar o homem:

O valor educativo do fantástico é mal percebido, muitas vezes negado, porque é um valor indireto, porque age subterraneamente, a longo prazo, no quadro de educação global da personalidade integral (HELD, 1980, p. 233-234).

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A influência da psicologia experimental, que, no século XX, revelou a inteligência como o espaço organizador da compreensão do mundo em cada pessoa, fez crescer a percepção da importância da literatura infantil como meio fundamental para a evolução e formação da personalidade do futuro adulto (Coelho, 2000, p. 30). Isso fez com que fosse decisivo para a literatura infantil e juvenil a adequação de uma linguagem capaz de conseguir falar aos seus possíveis destinatários. Sandroni (2007) estima que 10% do que é publicado é bom. Nem sempre os livros que compõem esse percentual são fáceis de serem encontrados nas livrarias, mas dá mesmo prazer descobrir que na prateleira de baixo, obras como Histórias da Pré-História, do italiano Alberto Moravia (1907 – 1990); Era Duas Vezes o Barão Lamberto, do também italiano Gianni Rodari (1920 – 1980); O Sonhador, do inglês Ian McEwan; A África, meu Pequeno Chaka, da francesa Marie Sellier; Quem é Quem nesse Vaivém?, do brasileiro Nelson de Oliveira; e O Macaco Danado, da escocesa Julia Donaldson.

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Literatura infantil e juvenil no Brasil

No Brasil colônia, até o final do século XIX só existiam praticamente adaptações de fábulas e contos tradicionais estrangeiros. O livro de Contos da Carochinha (1894), de Figueiredo Pimentel, dá um toque local às histórias tradicionais. Com a mudança da família imperial para o Rio de Janeiro, em 1808, D. João inaugura a Impressão Régia, onde passam a ser impressos vários clássicos da literatura infantil européia. Autores como Olavo Bilac (1865 – 1918) fazem traduções e adaptações de poesias infantis; Viriato Correia (1884 – 1967), que tinha uma coluna infantil no Gazeta de Notícias, lança em parceria com João do Rio (1881 – 1921) o livro Era Uma Vez…; Sílvio Romero (1851 – 1914) publica Contos Populares e uma parceria de Olavo Bilac com Coelho Neto (1864 – 1934) resulta em Teatro Infantil.

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Nos centros urbanos, escritores consagrados davam suas contribuições para o que seria a preparação para o nascimento de uma literatura infantil brasileira. “Conto de Escola”, de Machado de Assis (1839 – 1908) tratava de ética, mas como literatura, sem o didatismo chato e atrofiante dos ensinamentos racionalizados demais. “Será o Benedito!”, de Mário de Andrade (1893 – 1945), é uma história da amizade de um pequeno malazarte negro de 13 anos, que mora no campo, com os adultos civilizados da cidade, numa tentativa do modernista de seguir Lobato, na crítica ao eurocentrismo enfadonho da elite colonial brasileira.

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Até a primeira metade do século XX, as histórias do tempo em que os bichos falavam tornaram-se muito populares no interior do País. A transmutação de vozes de animais para que servissem de intérpretes dos sentimentos humanos, foi um recurso encontrado por uma população (praticamente) analfabeta para ensinar a seus filhos e para lhes sugerir saídas em situações adversas. Histórias de onça, macaco, bode, seriemas, raposa, papagaio e outras aves e animais, povoaram o imaginário nacional. Mauro Mota (1978) registra que essa zoofilia se expressa como um sentimento comum na literatura brasileira.
 
A caracterização dessa atração faunística aparece nas obras de grandes escritores, tais como: o sabiá de Gonçalves Dias (1823 – 1864); a jandaia de José de Alencar (1829 – 1877); as borboletas azuis de Casirmiro de Abreu (1837 – 1860); “A Mosca Azul”, de Machado de Assis (1839 – 1908); os pássaros, animais e insetos locais e estrangeiros de Castro Alves (1847 – 1871); as figuras míticas com fabulosos cornos de Cruz e Sousa (1861 – 1898); as Fábulas Brasileiras, de Antônio Sales (1868 – 1940); a barata e a velha de Manuel de Oliveira Paiva (1861 – 1892); o “Orgulho do Burro”, de Catulo da Paixão Cearense (1863 – 1946); o corrupião encaveirado de Augusto dos Anjos (1884 – 1914); a cotovia de Manuel Bandeira (1886 – 1968); a cachorra Baleia de Graciliano Ramos (1892 – 1953); os centauros de Jorge de Lima (1893 – 1953); o gavião-peneira de Ascenço Ferreira (1895 – 1965) e o cão sem plumas de João Cabral de Melo Neto (1920 – 1999).

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Em folhetos de cordel, a narrativa de bichos-heróis aparece aos montes, em obras como o “Romance do Pavão Misterioso”, “O Boi de 7 Chifres”, “O Casamento da Pulga com o Percevejo” e “O Cavalo que Nasceu de Bigode e Cavanhaque”. A influência ibérica do conto alegórico trouxe também a arte dos pícaros e as histórias tradicionais, a exemplo de “Carlos Magno e os Doze Pares de França” e a “Donzela Teodora”, temas tão bem trabalhados atualmente por Ariano Suassuna e Antônio Nóbrega. Ainda como decorrência da oralidade medieval que chegou ao Brasil por meio das grandes navegações, no século XVI, registra-se a contação com grande alcance infantil do teatro de mamulengos.

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A grande inflexão no cenário da literatura para crianças no Brasil foi provocada pelo escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948), a partir do final de 1920, quando ele lançou A Menina do Narizinho Arrebitado. Somaram-se a este mais três dezenas de livros autorais, que se tornaram clássicos da literatura infanto-juvenil brasileira. Isso sem falar nas adaptações e traduções de obras que se tornaram populares também no Brasil, como Tarzan; Mogli; Poliana; Moby Dick; Robinson Crusoé e muitas fábulas. Meio avant-la-lèttre, Lobato desenvolveu um extraordinário método construtivista de preparação das crianças para serem grandes leitoras e cidadãs preparadas para os desafios da brasilidade.

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No prefácio da edição de Reinações de Narizinho, título que faz parte da obra lobatiana agora revitalizada pela Editora Globo, os pesquisadores Vladimir Sacchetta e Márcia Camargos realçam o tanto que o escritor respeitava a inteligência das crianças e dos jovens no sítio da Dona Benta, onde a convivência das crianças com os adultos acontece de igual para igual.

Comum nos dias de hoje, essa atitude era impensável na época de Lobato. Quando ele criou suas histórias, no começo do século XX, os pais falavam e os filhos obedeciam sem dar um pio. Não questionavam os adultos, nem diziam o que pensavam. Foi ele quem ensinou como todo mundo pode sair ganhando com o diálogo (SACCHETTA; CAMARGOS, 2007, p. 7).

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Em sua pedagogia para o desenvolvimento, Lobato realmente ofereceu às crianças o espaço imaginário do Sítio do Picapau Amarelo para que elas, assim como os personagens, aprendessem brincando. Tudo isso, em um momento que o País começava a se industrializar, mas ainda sofria intensamente os efeitos da resistência de suas elites política e econômica à libertação dos escravos (1888). Nas últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, os imigrantes italianos, espanhóis, alemães e portugueses, que foram acolhidos como novos brasileiros, trouxeram a imagem da criança no trabalho fabril, reforçando um contexto de muitas limitações para a semeadura da fantasia.

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Na década de 1930, Érico Veríssimo (1905 – 1975) somou o brinquedo aos animais e às pessoas, e circulou com muita desenvoltura pelo imaginário dos leitores infantis, seguindo os passos e as asas da linguagem e do movimento. Na história do Avião Vermelho, o menino Fernandinho, que talvez seja o seu próprio filho, o jornalista e escritor gaúcho, Luis Fernando Veríssimo, voa pelos quatro cantos do mundo fazendo “Brrrr” com a boca, simulando o barulho do motor do avião de brinquedo; possibilitando ao leitor a oportunidade de ser produtor de sentido.

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Na segunda metade do século XX, autores nacionais renomados lançaram livros infantis e juvenis que valorizaram a poesia feita para brincar. Mário Quintana (1906 – 1994) lançou Batalhão das Letras; Cecília Meireles (1901 – 1964), Ou Isto ou Aquilo; Vinícius de Moraes (1913 – 1980), A Arca de Noé; José Paulo Paes (1926 – 1998), Poemas para Brincar; e Ziraldo, Flicts, que considero um inusitado livro de poesia. As diversificadas linhas estilísticas da literatura infantil brasileira tem conquistado muitos destaques de reconhecida qualidade, como é o caso de Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof, Eva Furnari, Marina Colassanti, Lygia Bojunga, Rachel de Queiroz e Manoel de Barros.

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Encurtamento da infância

Nos tempos atuais, em que a pedofilia de mercado trata a criança como mera consumidora, os movimentos de massificação de mercado voltaram a adultizar meninas e meninos. Os brinquedos dispensam a imaginação e os produtos culturais já entregam tudo a mentes cada vez mais preguiçosas. A comunicação de massa e os meios eletrônicos têm alinhado novamente a infância ao mesmo espaço

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simbólico dos adultos, o que coloca em risco de extinção a meninice e a puberdade. Neil Postman, professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Nova Iorque reconhece que a cultura estadunidense é hostil à idéia de infância, mas revela o quanto tem sido animador descobrir em seus estudos que as crianças não o são. Ou seja, há uma esperança negando o encurtamento da infância.

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Kincheloe e Steinberg (2001) consideram a infância uma criação da sociedade, sujeita, portanto, a mudar sempre que ocorrem mudanças sociais mais amplas. Elas consideram que o período entre 1850 e 1950, quando foi comum as crianças viverem em lares com os pais biológicos, como o auge da infância, que passou a ir à escola e a receber atenção como ser em fase especial de desenvolvimento. Nas últimas décadas do século XX, com as novas configurações familiares, com o aperfeiçoamento da comunicação de massa e do estímulo ao consumo exagerado, a infância corre o perigo de sumir do mapa das faixas etárias.
 
O cotidiano é testemunho dessas transformações que largam as crianças ao horror do abandono:

Imagens de mães afogando filhos, babás torturando criancinhas, crianças jogando crianças de janelas do décimo quarto andar e violências praticadas na noite do Halloween saturam as conversas contemporâneas sobre crianças (KINCHELOE; STEINBERG, 2001, p. 13 e 14).

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Ao contrário da ideologia do consumismo, que se nutre nas fendas das ausências, o livro traz ao leitor o que está ausente. A verdade literária abre uma passagem secreta para os lugares mais distintos, para as idéias mais impensadas e dá um sentido memorável à vida. O bom livro é aquele que mexe com a mente e a imaginação, de forma a ativar o nosso sistema de respostas, criando as condições para especularmos, descobrirmos e interpretarmos o mundo a nossa volta. A leitura contribui para o que, nos universos macro e micro, vamos considerar como real ou não em nossas vidas. O livro dá ao leitor a idéia de infinitude do mundo e projeta a vida em uma imensa travessia, cheia de expectativas e descobertas.

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Por não ter compromisso com a lógica do que se considera realidade, a literatura fala diretamente à imaginação e à sensibilidade. Sandroni (2007) reflete sobre essa questão, advertindo que por se tratar de um ato gradativamente adquirido, a leitura deve ser estimulada e, para isso, a primeira providência a ser tomada por quem acredita no prazer de imaginar que o livro proporciona, é a de ensejar ao aprendiz da leitura o objeto a ser lido. Para ela, toda história contada ou lida é uma experiência nova para a criança e qualquer livro bem escrito acrescenta algo ao leitor.

A leitura é um aprendizado difícil e lento a necessitar de incentivos que levem a uma prática, solidária por excelência, mas que, sabem aqueles que a adquiriram, conduz não apenas ao maior conhecimento da língua e dos diversos ramos do saber, mas freqüentemente a momentos de raro prazer intelectual (SANDRONI, 2007, p. 21).

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O contramovimento de valorização da literatura, da leitura, são tentativas de libertar as crianças dos prazeres pré-cozidos para que construam suas infâncias felizes, mediadas pela imaginação. Muitas escolas já perceberam que não dá mais para tratar a literatura como mero instrumento paradidático, pois essa prática tem feito com que o livro deixe de ser apreciado pelas crianças como algo sublime. O livro continua sendo um meio de valorização da imaginação, o que enseja a individualidade sem induzir ao individualismo.

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Fenômenos do marketing literário, como O Mundo de Sofia (Jostein Gaarder) e Harry Potter (J. K. Rowling), unem superproduções literária e cinematográfica, com produtos de qualidade que exploram uma memória de magia, realçando sentimentos medievais de forma nova. Sucessos assim, atuam como desenvolvedores de mercado e formadores de leitores. Os baixos índices de leitura no Brasil têm sido vistos como “potencial de crescimento de vendas” pelas editoras estrangeiras que estão investindo no País.

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De onde vêm mesmo as Histórias Infantis?

As histórias infantis vêm da natureza lúdica humana e das relações das pessoas com o mundo intangível, mas vêm também da busca de, por meio do livro, se integrar ao espaço onde a vida acontece e não apenas para acumular informações. O valor de liberação que a palavra contém está na sua força de influência junto ao pensamento criativo, como um instrumento de transformação positiva do mundo. A liberação da potencialidade criativa está no âmago da proposta de Rodari (1982):
 
Criatividade é sinônimo de pensamento divergente, isto é, de capacidade de romper continuamente os esquemas da experiência. É criativa uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (na comodidade das situações onde se deve farejar o perigo), que é capaz de juízos autônomos e independentes (do pai, do professor e da sociedade), que recusa o codificado, que remanuseia objetos e conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo (RODARI, 1982, p. 140, grifos dele).

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Se os hábitos não são saudáveis, a busca de leitura se dá por informações também não saudáveis. Sandroni faz um paralelo entre o que considera dois hábitos fundamentais, o alimentar e o de ler. “A criança comerá o que a sua família ou grupo social come (…) A criança com fome chega a rejeitar um alimento que não faz parte de seu hábito” (2007, p. 22). Lembra que o hábito se forma cedo e que cedo meninos e meninas precisam se relacionar com o livro para poder virarem leitores naturalmente.

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A publicidade pedófila estimula a passividade mórbida e o egoísmo, a destituição da autoridade dos pais e educadores. Susan Linn, ventríloqua, psiquiatra e ativista da luta contra o avanço da fúria do mercado sobre a infância nos Estados Unidos, acredita que há medidas a serem tomadas a fim de parar com essa exploração comercial da infância e seus efeitos sociais e de saúde pública.

A resposta é simples. Vamos acabar com o marketing direcionado às crianças. Não há provas de que seja benéfico. Não há nem mesmo provas de que seja neutro. Há uma quantidade crescente e persuasiva de provas de que é prejudicial para a saúde física, mental, social e emocional (LINN, 2006, p. 244).

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Concordo com Linn, a saída é pressionar as empresas e suas marcas quando forem irresponsáveis no abuso da credulidade infantil. Mas precisamos somar outras alternativas. E uma delas, para mim uma das mais eficientes, é estimular a leitura. O aumento da leitura depende do que se pensa em procurar dentro dos livros. A escritora francesa Jacqueline Held cuida do imaginário como fator de desenvolvimento e de renovação das potencialidades humanas, como o motor do real. Para ela, a ficção se assemelha a um brinquedo, responde a uma necessidade mais profunda de não nos contentarmos simplesmente em existir. Assim, a leitura é o passo para o imaginário. O livro desbloqueia o imaginário. Essa é a grande contribuição pedagógica da literatura.

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As histórias infantis não existem, como já frisei, por derivação da compreensão de que existem crianças, elas vêm, não esqueçamos, de antes da infância porque o ser humano é lúdico em sua natureza. Huizinga (2001) integra o conceito de jogo no de cultura para expressar sua convicção de que é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve. Nem a palavra nem a noção de brincadeira tiveram origem no pensamento lógico ou científico. O jogo está presente na cultura de todos os povos e se distingue da seriedade por ser uma entidade autônoma e de ordem mais elevada do que a da seriedade. A seriedade é excludente, enquanto o jogo pode incluir a seriedade sem problemas.

O significado de seriedade é definido de maneira exaustiva pela negação do jogo – seriedade significando ausência de jogo ou brincadeira e na mais. Por outro lado, o significado de jogo de modo algum se define ou se esgota se considerando simplesmente como ausência de seriedade (HUIZINGA, 2001, p. 51).

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A leitura nasce fora do livro. Procura ler que tem algo a buscar. Cada tempo tem o seu leitor. Neste aspecto, as histórias infantis partem de duas necessidades humanas essenciais: a de exploração da natureza lúdica, como fio condutor da liberdade criativa em todas as idades; e a de testar hipóteses no plano imaginário, para a reinvenção da vida cotidiana. É desses dois sentidos, dessas duas direções que elas vêm. E podem nos alcançar por vários meios. Porém, nenhum deles oferece mais poder de revolver o que somos, a partir da dimensão exata do nosso universo de atenção e conhecimento, e do que é o texto literário que, ao contar, abre espaço para cada leitor se contar a si mesmo e ao mundo, consigo e com o mundo.

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(*) Flávio Paiva é jornalista, colunista do Diário do Nordeste e, para crianças, escreveu Flor de Maravilha – 20 histórias e 20 músicas; Benedito Bacurau – O Pássaro que não nasceu de um ovo; Fortaleza – De Dunas Andantes a Cidade Banhada de Sol; Titico Achou um Anzol e A Festa do Saci, todos publicados pela Cortez Editora.

REFERÊNCIAS

COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática. São Paulo: Moderna, 2000.

FREITAS, Marcos Cezar de (Org). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2003.

HELD, Jacqueline. O Imaginário no Poder: As Crianças e a Literatura Fantástica. São Paulo: Summus, 1980.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001.