Ensaio publicado no livro “Anel de Barbante: Ensaios de Cultura e Cidadania”
Fortaleza: Omni, 2005

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Página 11 da publicação

Toda grande cidade provoca por si uma definição da sua imagem. Uma cara formatada ao longo do tempo pelas diferenças que o lugar oferece, pelo que de positivo absorve da interação com o mundo, pelo que representa, pelo grau de consciência cultural da sua gente. Quem não é da terra de alguma coisa, não é de lugar algum. Quem não percebe nem tenta influenciar os rumos do lugar onde mora, não vai a lugar algum. Quando esse alheamento parece coletivo, então, o futuro torna-se um horizonte turvo, difícil de planejar e profetizar.

Apesar de habitada por mais de dois milhões de pessoas, Fortaleza ainda não é uma grande cidade, não tem semblante definido, nem personalidade simbólica. É um grande espelho embaçado, carente de olhares atentos. Não basta a beleza evidente. Não basta o amor que temos por ela. Íntima e afetuosa, a cidade amarga estonteada os exageros de uma elite de frívolas megalomanias em seu complexo de inferioridade. Com essa elite de alma rasa e uma legião de subcidadãos, nosso genius loci acaba personificado no estigma caricato da decadência exuberante. Pode não ser o fim, mas é um caminho tortuoso a se percorrer.

 

 

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Vesgos no ponto de vista do desenvolvimento, experimentamos o conflito entre a necessidade criadora e a concentração de renda perversa. Sob o influxo do medo nas ruas sem calçadas, nos desérticos corredores de muros altos, passam acanhados e humilhados pedestres ainda encandeados com os potentes faróis dos carros importados. Dia após dia, essas pupilas aprendem a reduzir a abertura do diafragma ocular obtendo o foco necessário ao apuro da coragem natural do nosso instinto de defesa e sobrevivência. A sabedoria lacaniana diz que o único caminho para um marginal se tornar sujeito é o da violência. Ao cometer um crime, ele passa a existir, saindo do mundo dos excluídos.

É injusto o isolamento de Fortaleza dos centros urbanos brasileiros visivelmente detentores de energia e vitalidade renovadora. A agressividade da construção civil, com seus sofisticados prédios fantasmas, soma-se à ausência de normas públicas regularizadoras do crescimento. Por outro lado, a vasta faixa de lazer gratuito que as praias nos oferecem, respalda a omissão de políticas públicas de entretenimento, inclinando por gravidade de atrações o equilíbrio da convivência social. O resultado desses e de outros paradoxos tem sido uma monotonia vestida de abadá nos períodos de férias e pré-carnavais.

Pouco cantada na perplexidade de uma hostilidade popular velada e de uma intelectualidade obediente, Fortaleza está amordaçada por sua pobreza geral opressiva, anunciando um futuro imponderável. E ninguém parece ter permissão para acionar o alarme. São pouco comuns os esforços interpretativos dessa sorte e, sem uma discussão pública inovadora, levamos a vida no limite da tolerância, nessa tristeza concedida. Logo nós, cuja cultura traz em seu código genético a irreverência transformadora do humor, da arte, do tino comercial, da conversa solta e da alegria.

 

 

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Alguns esforços entrecortados têm produzido trincheiras para a conquista do direito de revelação contundente das preciosidades do nosso patrimônio imaterial. Mas a pólvora ainda é pouca e muitas vezes úmida para que a cidade assuma a sua vocação plural de centro produtor de conceitos estéticos. Apesar da insistência controladora e viciada de alguns párocos culturais, Fortaleza inspira, respira e transpira fenômenos artístico-culturais que amadurecem em sonhos subterrâneos. Sitiados, mas não vencidos.

Homo sapos urbanos

Dizem que um sapo colocado naturalmente numa vasilha com água, em temperatura ambiente, mas em processo de aquecimento, é incapaz de se dar conta de que está sendo cozido até a morte. Faz parte da sua natureza de anfíbio gostar de esquentar o sangue, embora, como qualquer outro animal, sabe-se que lutar pela vida é parte do seu instinto básico. Assim, como a inércia do sapo desta historinha, tenho percebido a apatia das pessoas ante à aceleração do crescimento desordenado dos centros urbanos.

Nosso discreto silêncio denuncia que estamos sendo escaldados enquanto procuramos trocar o deslocamento livre do corpo pela navegação cibernética ou simplesmente tentamos construir uma suposta segurança de ficar em casa protegidos das “epidemias” das ruas. Ninguém quer se arriscar a cair no grupo de risco da violência. A liberdade das calçadas começa a adquirir dimensão de pesadelo porque o excesso de realismo gera a ausência da própria realidade. Basta ver os programas ditos populares que pretendem denunciar a miséria e acabam vulgarizando a violência, transformando-a em entretenimento. Exaltam bandidos e fazem da ação policial um jogo teatral de vaidades, instituindo o glamour da barbárie.

 

 

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Esta lógica de trocar o olho que vê pelo olho distraído acaba vazando ou saindo por entre dedos, se apertamos bem a mão. Virou natural e vem ganhando o escudo do óbvio, mas ainda é possível perceber o quanto é esquisito viver em uma cidade sem palmilhar seus espaços públicos, sem sentir a canalização dos ventos, o fluxo das pessoas ou sem poder escolher andar na calçada da sombra, do sol, da noite, do dia. Limitar as carícias dos nossos sentidos é pouco sadio para o corpo e para a alma.

É difícil imaginar a suspensão de uma simples ida ao cinema por causa da violência nas ruas. Pode-se até dizer que tem aparelho de televisão com tela do tamanho que o freguês quiser, que os videodiscos são irresistíveis, que tudo o que é filme pode ser visto em vídeo, mas, pensando bem, nada disso substitui a cumplicidade e o ritual de ir a uma sala de projeção. O filme escolhido começa em casa. Você toma banho para sair. Sai. Cruza ruas, becos e avenidas. Guarda o carro num estacionamento como se colocasse uma peça num quebra-cabeça vivo. Fila, pipoca, jujuba e os amigos e conhecidos que deixam o cinema pela porta de saída. Não vale contar o final. Deixa que eu compartilhe as emoções simultaneamente com todos os que formamos a platéia. Gosto de sentar um pouco atrás pois, para mim, ver as pessoas reagindo às emoções da tela ou de si mesmas é impagável.

A sociedade da violência gratuita e da comunicação em rede subtrai essa proximidade espacial criando um processo de interação virtual baseado na valorização do isolamento e, conseqüentemente, da solidão. Jean Baudrillard, que esteve no Brasil no mês de novembro de 1999 para uma conferência, revelou que a realidade virtual põe fim ao sonho, expurgando ilusões e desconstruindo o real. Apesar de dizer que o ser humano está perdendo o direito ao futuro, porque passou a consumi-lo antecipadamente, o

 

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filósofo francês alivia a tensão dos mais apavorados lembrando a identificação existente entre o perigo e o que salva.

A nossa capacidade de transformação é desconhecida dos nossos anseios, geralmente tão mesquinhos. Há em nós uma liberdade primitiva de superação da adversidade capaz de alterar sentidos, desejos e previsões de sucesso. Nas histórias em quadrinhos, um herói cego chamado Demolidor, detinha a admiração da minha curiosidade infantil por sua capacidade de atuar no mundo orientado por uma aguçada audição. Adolescente, conheci a música de Ray Charles e senti como através dela ele trazia as cores que aos sete anos deixou de ver apenas por ser pobre e negro. Assim, não existe razão para medo ou comodismo de sapo.

Nenhum modelo social é eterno, já que faz parte da gente evoluir. Talvez até sejamos surpreendidos por alguma atitude hibernada nos diretórios da inteligência, para podermos imprimir a nossa chancela no futuro que chega em alta velocidade e, espetacularmente, sem muito freio. Acontece que, como o sapo na água aquecida lentamente, nossa reação tem sido de muita passividade. E a realidade está fervendo. Neste caso, até o sapinho, com seu mais natural instinto de sobrevivência saltaria fora instantaneamente, para ir coaxar em outra lagoa. E os fortalezenses, via de regra, seguem aceitando tantas queimaduras com grito contido, apelando para ungüentos e ataduras na memória e nas relações afetivas com o cotidiano da cidade.

A Fortaleza contemporânea vive um momento de extrema sensibilidade e insegurança de personalidade. Põe um cigarro na boca para mostrar que é madura, mas não convence. Finge que está preparada para o turismo, mas só sabe cair na “miamização” arquitetônica. O designer Paulo Barbosa celebrou essa obsessão chamando-a de “sincretinismo” local no fenômeno da metropo-

 

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lização. Dia desses, no programa Jô Soares Onze e Meia, da TV Globo, o ator Fernando Torres recomendou ao entrevistador que não programasse seus espetáculos para os palcos de Fortaleza, porque na capital cearense as pessoas não gostam de teatro; que em Fortaleza só se sabe fazer prédios. Verdade dura, de cimento armado.

No complexo de sapo escaldado em que estamos mergulhados, fica difícil acreditar na reformulação das nossas políticas urbanas. A questão vai do atendimento de demandas de serviços públicos essenciais ao fortalecimento e desenvolvimento do potencial cultural da cidade. Estamos sem imaginário urbano. Falta mais conhecimento e difusão da nossa memória individual e coletiva. É facilmente visível a desmaterialização de espacialidades fundamentais à preservação de referências que garantam a Fortaleza horizontes positivos. Se a saída é o ciberespaço, precisamos saber com quantos gigabytes se faz uma jangada, como alerta Gilberto Gil em uma de suas ardentes composições.

Somos uma capital de migrantes, cheia de provincianismo tacanho por todos os lados. Isso explica a angústia da aparência superposta ao prazer. Não conseguimos ser ainda cidadãos do Grande Circular e nos sentimos em plena era da cidadania virtual. Ligados ao mundo e desligados dos vizinhos. Que sustentação social poderá ter tal comportamento? Se continuarmos assim, acabaremos chegando à indesejável condição de solitários e tristes. Se Fortaleza tem uma vocação para a alegria que é inconfundível, por que não investir mais nessa luz, nesse poder de agregar e construir relações saudáveis de desenvolvimento? Não falo do enfileiramento monocromático dos eventos artificiais, falo da desconstrução espontânea, respaldada por estruturas culturais sérias e consistentes.

 

 

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Roda, roda, roda e a questão volta para a confusão que vivemos entre o tanto que podemos fazer para termos uma vida melhor e a fuga para o individualismo. Se o fundamental não está no princípio nem no fim, mas na travessia, como deixou refletido Guimarães Rosa (1908 – 1967), o que estamos fazendo parados enquanto a cidade onde vivemos é destruída pela especulação imobiliária, pela instalação de rotas de tráfico de drogas, crianças e adolescentes prostituídas? Não há motivos para sucumbirmos à toa. Temos o sangue quente, não somos anfíbios.

Aluga-se Fortaleza

As placas de “Aluga-se” e “Vende-se” estão nos muros, nas janelas dos apartamentos, nos postes e nas paredes dos edifícios. Não fosse a idéia fixa dos letreiros vermelhos, seria de se pensar que um novo adorno importado estaria contagiando Fortaleza. Essas placas sufocam a atração florida das jardineiras, pontuando as paredes externas dos imóveis de lápides promocionais. Parecem pequenas bocas exibicionistas de gritos mudos disputando o nosso olhar com pertinência. Afetados pela omissão da faculdade de querer traduzir esse tipo de depoimento silencioso que a cidade revela, esquivamo-nos da responsabilidade de, pelo menos, procurar entender tão excêntrica ornamentação e, assim, ficamos supostamente imunes às suas causas e efeitos.

Ao negligenciarmos o significado desses avisos, por uma certa dislexia cotidiana, estamos na verdade decidindo esperar Godot. Tal qual a sina dos marcantes personagens de Samuel Beckett (1906 – 1989), caímos no engodo de aguardar por quem não ficou de vir. Mais do que isso, esperar Godot é também não saber o que a sua duvidosa chegada poderia significar. Assim, passamos os dias, enquanto as principais metrópoles do mundo procuram encontrar um jeito de recuperar os centros históricos que aban-

 

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donaram. Fortaleza vem fazendo algum burburinho nesse sentido, mas cai em contradição ao elevar e inviabilizar simultaneamente o centrão da Aldeota e a fazer avançar o cinturão de pobreza da suburbanização.

O silêncio espantado desses crachás imobiliários denuncia a falta de planejamento urbano e um crescimento autofágico de uma época de empreendimentos pouco articulados e sem compromisso com a cidade. No desvario da individualidade míope, cercamos praças, igrejas, ruas e colocamos telas de proteção para segregações de consumo. Deixamo-nos depender de uma burocracia meritocrática e fisiológica, que está se lixando para a ocupação desordenada do solo, prédios fantasmas, insegurança, gambiarras viárias e o congestionamento do trânsito, desde que possa se esbaldar em gastos exorbitantes com intervenções isoladas. O resultado não poderia ser diferente de um colapso urbano.

Imagino que, se preservássemos todos os vazios ainda existentes para a recriação de ilhas verdes da esfera pública, poderíamos estancar essa sangria de qualidade de vida. Com mais pontos de encontro, mais praças, mais espaços livres para recreação, espetáculos e comícios, viveríamos mais adequados à nossa realidade. Em um lugar quente como Fortaleza, a vida deveria acontecer mais nas ruas arborizadas. A ação de um urbanismo pluridisciplinar fortaleceria o apego das pessoas pela cidade. Do modo solitário e matreiro que a nossa arquitetura permeia os interstícios urbanos, termina por encarecer o deslocamento habitacional e comercial — que exige novos investimentos com infra-estrutura.

A construção civil é um setor estranhamente poderoso. Vive chantageando a sociedade e o governo com o argumento de ser o maior empregador de mão-de-obra desqualificada. Não tenho como estipular quanto custa o financiamento de tantas construto-

 

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ras e incorporadoras. Qualquer que seja o valor, com certeza sairia mais em conta investir para qualificar trabalhadores e torná-los aptos a serem geradores da própria renda. A caridade oficial, que mantém a dinâmica controvertida desse setor, pouco se justifica. Com dinheiro abundante, fácil e, quem sabe, talvez até bem “lavado”, os construtores não querem saber de código de postura municipal e muito menos de cidadania baldia.

O otimismo precipitado de uma elite inculta e desavisada fez convergir para Fortaleza a riqueza do interior. É, portanto, fora do comum o fato da cidade continuar crescendo tanto fisicamente sem uma visível sustentação econômica. Flats de luxo, apartamentos de padrão sofisticado e imponentes paraísos de compras com ar-refrigerado, se apresentam com metro quadrado de alto valor. Sala para escritório tem a rodo para alugar, vender e trocar. Mas a máquina de fazer dinheiro continua construindo mais e mais. Não é uma produção por demanda, mas por justificativa de aplicação e manipulação de recursos. Depois de pronto, se o imóvel vai ser ocupado ou não, pouco importa.

Placas e mais placas decoram a cidade, anunciando esse grave descaso. Com os sentidos direcionados para a posse ou simplesmente usufruto de um pedacinho que seja disso tudo, as pessoas trabalham, trabalham, trabalham e pelo que se vê não parecem mais felizes. Tem alguma coisa errada nessa equação de vida. O estímulo ao desejo não afiança saciedade. Quando procuramos seguir o sonho dos outros, anulamos o nosso jeito de sonhar. As mensagens estampadas nas placas de “Aluga-se” e “Vende-se”, espalhadas pelas ruas, afloram do inconsciente de uma cidade aflita que pede amparo para poder nos oferecer mais entusiasmo de nela viver, fazer coisas e amar.

 

 

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Era uma vez Iracema

Toda intervenção urbana é ideológica, mas há algumas que chegam a ser escatológicas. O vandalismo oficial que vem permitindo a mercantilização dos espaços públicos na Praia de Iracema beira a esse nível de consumação do tempo e da história. O bloqueio desse foco de efervescência cultural, através da descaracterização sistematizada, enfraquece o espírito do lugar e apaga os seus traços de identidade. Fica bem mais fácil ser dono de um bairro sem forças, de uma cidade de ninguém. É lamentável constatar que a maioria dos empreendimentos feitos no local obedece apenas a uma projeção de espertezas individuais que comprimiram o bairro a se tornar uma zona propícia a todo tipo de aviltamento e improbidade.

Entregue à própria sorte, a Praia de Iracema foi deixando de ser uma das mais importantes referências culturais de Fortaleza para virar nada mais do que um apetitoso destino de negócios e improvisos descontextualizados. Muitos dos equipamentos e obras de infra-estrutura realizados no local parecem bastante interessantes quando observados isoladamente. A calçada por trás do Estoril, a ponte metálica, o Centro Dragão do Mar e o aterro construído no trecho de praia da ex-avenida Aquidabã, são alguns desses exemplos que não levam em conta impactos culturais e ambientais. A ausência de planejamento integrado, de visão sistêmica e de respeito aos valores históricos e culturais condensados naquela área, confere a essas ações um ponto em comum, que é o esforço de criação de um agitado eixo de consumo para a cidade. E nada mais.

No começo esboçaram-se algumas reações localizadas mas prevaleceu a intransigência administrativa dos executivos públicos e o alheamento vergonhoso da sociedade. Os camelôs de alvarás

 

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passaram a fazer a festa liberando edificações irregulares quanto ao limite de andares e em relação ao uso e ocupação do solo. O conceito de “Iracema Beach” contaminou as pequenas ruas que timidamente ainda conservam nomes indígenas nas paredes. De jogo de boliche, casa de pagode, grifes de micaretas, pistas de inferninho e boates pornôs, a acampamento de bicho-grilo, instalou-se de tudo sobre a memória do lugar. Inclusive prédios elevados acima da altura permitida, tirando a visão de quem gosta de apreciar a beleza do mar. Essa onda de inconveniências e artificialismos descaracterizou a praia e estimulou a ampliação da freqüência de pessoas pouco interessadas em noção de responsabilidade pública e valorização cultural. A corrida para ocupar os espaços ociosos é tão sem freios que acabará não sobrando lugar para estacionamento de veículos nem para a circulação de coletivos especiais. Como a compreensão sobre código urbano de posturas e plano diretor está restrita a poucos privilegiados, o senso do caos faz com que cada qual cuide estritamente do seu ignóbil filão.

No entorno do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura esse individualismo revela-se em atitudes facilmente identificáveis como a guerra das caixas de sons. É insuportável sentar em qualquer daqueles bares para usufruir de um recanto tão agradável de convivência. O volume da música é tão fora de propósito para o ambiente que prejudica até mesmo os shows apresentados no anfiteatro. O Dragão não deveria ser encarado como um shopping cultural. Cabe à sociedade mobilizada interferir para que ele encontre a sua alma, que é também a alma da cearensidade. Não é uma tarefa fácil, mas será um erro ficarmos simplesmente exaltando o deslumbramento da sua estrutura de pedra e cal iluminada.

Certa vez fiz uma palestra no auditório do Dragão para pessoas que usufruem do entrono daquele equipamento cultural e citei uma fábula de Esopo para ilustrar a minha percepção de que

 

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eles com a estupidez da ganância estavam matando a galinha dos ovos de ouro. O contraditório é que todos aplaudiram. Tenho dito por onde converso sobre esses assuntos, inclusive com abordagens junto à direção do Dragão, que nada é mais estranho para mim do que naquele centro de cultura não ter sequer um espaço com vídeos, instalações e exposições que levem os visitantes a saberem quem foi mesmo o Dragão do Mar. A sabedoria cidadã do pescador Chico da Matilde precisa impregnar o conceito do centro que de forma avergonhada leva o seu nome.

Circular pela Praia de Iracema deveria nos dar automaticamente a sensação de estar recebendo uma aula sobre a história de Fortaleza, seus movimentos culturais, a saga dos migrantes e o enredo de um passado de gloriosas exportações de couro, algodão, mamona, oiticica e cera de carnaúba que os galpões guardam em silêncio. Quando criança costumava ver dezenas e dezenas de caminhões carregados de algodão passando nas empoeiradas estradas do sertão. Era bonito. Só quem viu sabe desse Ceará de fartura rural que não existe mais. Por isso, quando olho as pessoas transitando entre aqueles armazéns como se fossem apenas velhas edificações sem nexo, sinto um imenso vazio de honestidade coletiva. É muito duro viver em uma cidade órfã de memória, que não consegue despertar curiosidades sensoriais.

A apreciação de um lugar depende significativamente da generosidade dos seus espaços e da sua cultura. Para que haja urbanidade é necessário o estabelecimento de uma relação afetiva com o meio. O que, por sua vez, só é possível com a difusão do entendimento do que é espaço público. Uma paisagem é pública, o que se vê é público. Pouco atentamos para isso. Quando nos omitimos diante da transfiguração insensata de um bairro tão especial para Fortaleza, como a Praia de Iracema, é um mau sinal de que dentro de nós também estamos deixando sumir o desejo de

 

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viver em uma cidade melhor. O mar continua comparecendo com toda a sua grandeza e beleza pacientes, mas quem deve saber da necessidade do horizonte somos nós.

Vida e morte no Carnaval

A segurança em Fortaleza é o grande tema das campanhas eleitorais, mas a discussão não consegue escapar dos padrões repressivos e dogmáticos. O número de mortes nos períodos carnavalescos é um exemplo da necessidade de ajuste de foco estratégico, considerando que na avenida Domingos Olímpio, onde acontece o carnaval popular da cidade, a solução da não-violência desfila em loas de inclusão. O entusiasmo das pessoas que vão se divertir na avenida é muito mais importante do que a atenção que é dada a elas. A tranqüilidade da multidão no carnaval de rua de Fortaleza é um exemplo de combate à violência pela não-violência.

Quando observo esse grande encontro das pessoas comuns em seus dias de folia, fico mais e mais convencido de que o segredo da não-violência é ter motivo para ficar junto. Essa consciência é fruto das várias vezes que acompanhei os desfiles dos blocos de maracatu em Fortaleza. É um verdadeiro fervilhar de gente. Nunca presenciei, contudo, qualquer ato de agressão. Pelo contrário, tive a felicidade de andar despreocupado pelo asfalto, apreciando toda a alegoria e a simpatia dos nossos brincantes. Pessoas simples apresentando seus mecanismos de criatividade e glamour, valorizando o espaço público, dançando sossegadas por onde passam os carros e a pressa do cotidiano.

A movimentação em torno de razões comuns deixa esses momentos mais iluminados. Nas calçadas e nas arquibancadas, adultos e crianças mimam os semelhantes, aplaudindo passos, fantasias e os efeitos especiais da alma. É um desfile a pulso de

 

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coração e técnica de solidariedade, proveniente dos bairros. A alta-costura dos galpões de periferia, somada à alegria de poder tocar as estrelas inatingíveis da imaginação, resultam numa espetacular celebração do desejo. Enquanto isso, a casta pretensamente cult da cidade sai para “ouvir” jazz no frio serrano do Maciço de Baturité. Uns justificadamente por prazer e outros apenas para externar vontade de distinção e demarcar uma suposta posição de avanços estéticos.

A trama da inversão é própria da natureza do Carnaval. Mudam-se as regras e a hierarquia para o desfile de risonhos guerreiros de estandartes pretos, brilhantes e berrantes, em cenas visuais do maracatu. As loas são enredos tautológicos de louvação e afro-brasilidade. Tisna com brilhantina simbolizam rostos maravilhados pela sabedoria do respeito ao outro. Por trás dos lances desinibidos dos atores desse grande encontro esconde-se um dos enigmas da paz: o querer coletivo. A motivação para as pessoas estarem ali não vem de fora para dentro, não é induzida por insistentes promessas de marketing. Cada indivíduo, cada grupo, cada bloco leva consigo a própria deliberação de se exibir como atributo de uma expressão cultural.

O que distingue este tipo de evento das micaretas baianas é a diversão sem esquizofrenia. No curral dos carnavais fabricados pela indústria do entretenimento, a violência é o retrato de uma juventude entristecida e solitária em sua indigência cultural. Essa é a máscara escondida pela concentração de riqueza, é o disfarce que está por trás da violência. Finge-se que é um mal da pobreza, dissimula-se que a raiz do problema está nas folhas secas das árvores caídas dos excluídos. Auto-engano, transferência, nada mais. Na avenida dos maracatus aflora a harmonia da diversidade, a magia da conquista do exercício da inversão e uma periferia que quer ser alegre e sentir-se parte, desfilando ombro a ombro seus elementos

 

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culturais, ricos na prática da criatividade. Pronta para influir na busca de outra ordem e de outra agenda social.

O investimento em situações que dão importância aos laços comunitários, multiplica o sentimento de inclusão, cria antídotos para a violência e gera subprodutos culturais e turísticos. O apoio a espetáculos como o carnaval de rua de Fortaleza deveria ser visto também como aporte político ao equilíbrio de uma cidade apartada. Os carnavalescos contam com proteção de madeira nas laterais da passarela, iluminação branca realçando as cores originais dos figurinos, som ao longo do espaço de desfile e portal de entrada. Não tem camarotes luxuosos para vender nem a relação custo-benefício é muito clara ante as viseiras comerciais imediatistas. O resultado não pode ser contabilizado logo no final da festa. É ação para médio e longo prazo, atitude para sinceros compromissos sociais públicos e privados.

Maracatu cearense

Todas as vezes que me deparo com alguma manifestação do nosso maracatu, fico com um indescritível sentimento de negligência social. Não consigo imaginar como é que deixamos essa expressão de alegoria saudosa atravessar o tempo regurgitando, meio sozinha, a síntese de uma história lastreada no espetáculo das raças. O que me conforta é poder constatar que o tamanho da nossa apatia ainda não foi capaz de matar o ânimo dessa gente que insiste em manter vivo o simbolismo do espírito popular. Em contrapartida, as elites da atualidade parecem não alcançar sequer a compreensão dos déspotas coloniais, que chegavam a promover esse tipo de festejos encomendados, como forma de válvula de escape para os escravos.

 

 

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É certo que a igreja hoje não exerce mais o mesmo poder de influência nas decisões políticas. Essa tarefa vem sendo conduzida pelos estrategistas de marketing. A necessidade sutilmente percebida nos confessionários passou a ser identificada por pesquisas estatisticamente corretas. De tão pouco sabermos da nossa história e de tão pouco respeitarmos o que tem sobrado dela, dificilmente fenômenos como o maracatu aparecem como relevantes nas decisões oficiais e de mercado. Mas quando temos a oportunidade de nos depararmos com o séqüito de gala e batuque, entre negrumes de fuligem e brilhantina, somente os corações maculados por preconceitos não tiram loas ancestrais.

O maracatu cearense distingue-se dos demais praticados em outras regiões do país, por ser essencialmente um auto de louvação solidária aos escravos africanos que foram trazidos para os nossos parcos canaviais. Em memória dos reis negros, as pessoas pintam o rosto de preto e, com indumentária brilhante, fazem a dança cadenciada de canto nostálgico, dando poesia ao banzo e significado à vida. Se considerarmos que o Ceará foi o primeiro estado brasileiro a libertar os escravos (25.03.1884) e que este fato, mais do que razões econômicas e políticas, ganhou sentido moral na índole resistente da gente nativa, praticamente exterminada por não aceitar o modelo cativo do colonizador, dá para crer neste motivo como rudimento espontâneo do ritual de transgressão dessa simbiose cultural.

 

 

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As festas de coroação dos Reis do Congo e Rainha de Angola atravessaram o Atlântico seguindo os navios negreiros, como uma dádiva dos brancos. Marcado por repiques de sinos e toques de tambores, o culto à Nossa Senhora do Rosário foi simbolicamente entregue aos negros, na tentativa de manutenção da ordem. Ação de reconstituição social que, guardadas as proporções circunstanciais, alguns movimentos religiosos continuam praticando através de confrarias de afetividade para os contingentes de desempregados e despossuídos. No Brasil escravocrata, foi a inteligência missionária que cuidou desse teatro de rua, no qual muitos descendentes dos reis africanos fingiam ser reis por um dia. Criaram-se as irmandades negras assistenciais para, em compensação, haver a conquista de maior disciplina por parte dos escravos.

Folguedo vem de folga, descanso, divertimento e o reisado tem tudo isso. A sabedoria popular deu grandeza a essa encenação e foi adaptando seus valores com o tempo. Visto como uma mistura de sagrado e profano, os participantes do maracatu foram orientados a migrar da ritualística natalina para as festas carnavalescas. Com isso os brincantes perderam o empréstimo de jóias e adereços dos seus ex-donos, para ganhar o esplendor da liberdade entre miçangas e estandartes improvisados. A versão cearense dessa dança dramática afro-brasileira ganhou clima de carnaval no final dos anos 30, do século XX. Muitos rostos tisnados desfilaram ao longo dos anos, pelas ruas da capital e do interior, suas homenagens à negritude, matriz dignificante do Brasil mestiço.

A extinção de muitos grupos aconteceu com a mesma naturalidade com que foram e continuam sendo criados novos maracatus. Passaram o do Outeiro, do Beco da Apertada Hora, Morro do Moinho, Nação Uirapuru e Rancho Alegre, dentre outros. No carnaval de Fortaleza, desfilam o Áz de Ouro (do Jardim América), Reis de Paus (da Piedade), Vozes da África (do Centro), Rei de Espada (do São Gerardo), Nação Baobab (da Bela Vista), Nação Pirambu (da Comunidade de Quatro Varas) e o pára-folclórico Dragão do Mar, do Grupo de Tradições Cearenses. Na cidade de Itapipoca, o Ás de Espada desfila desde os anos 60 e nos últimos anos foi criado o Reis de Ouro. Na região do Cariri, principalmente em Milagres, a padroeira Nossa Senhora das Dores ainda festeja a coroação dos reis negros.

 

 

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Com tanta substância cultural é lamentável a nossa insensibilidade diante dessa manifestação. Mais do que um cortejo carnavalesco, o maracatu deveria ser apoiado nos bairros, para descentralizar os espaços de convivência urbanos, através do fortalecimento das comunidade criativas. Em torno de moduláveis maracatódromos nasceria também uma vida econômica informal, alimentada pelos turistas que iriam aos bairros para ver as apresentações, os ensaios, o artesanato, saborear a culinária e orar. Vejo o maior potencial do maracatu como um ritual de iluminação, de passagem do transe do dia-a-dia para o quase sempre esquecido interior da gente.

Olha pro céu por favor

Da mesma maneira que o maracatu se revela como uma manifestação da cultura popular significativa em Fortaleza, as quadrilhas juninas continuam impressionando a quem quer que se disponha a enxergar o quanto as pessoas necessitam dos folguedos para viverem. As escolas, normalmente contaminadas pelo furor da indústria cultural, tratam a questão como uma generosidade do ensino para com o folclore brasileiro. A animação parece nesses casos uma regressão cultural e não um sentimento vivo e atual. Óbvio que o cotidiano urbano tem os seus próprios ares e lógicas de convivência. Entretanto, se vivemos em uma capital de migrantes, é também óbvio que se perpetuem adaptações das festas que vieram do campo.

A despeito do grau de compreensão que se tenha das manifestações da cultura popular, as festanças juninas estão entre as de maior destaque em Fortaleza. A animação ganharia mais significado se percebêssemos com mais clareza que nesse período a natureza também fica em festa. Junho é o mês do ano em que se comemora a colheita das nossas principais fontes de alimento.

 

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É mês de fartura no interior. A alegria ganha acompanhamento de milho assado, feijão verde, canjica, pé-de-moleque, tapioca e muitos outros pratos típicos. Todos ofertados pela generosidade da terra e pelo trabalho das pessoas que plantam, das que colhem e das que preparam saborosas comidas.

Tão bom quanto se divertir nessas festas é saber do sertão coberto de felicidade. Assim como as pessoas, a natureza comemora a sua força realizadora nas estações chuvosas. O legume, as sementes silvestres, os pássaros e os animais fazem um espetáculo de beleza e vida. Nas margens das estradas, a malva braba saúda os viajantes exibindo milhares de pequenas flores de tom amarelo queimado, na regência coreográfica dos ventos. Tantas flores anônimas. Milhares delas, de todos os tipos, tamanhos e cores anunciam o borbotar da alma da paisagem em festa.

As borboletas enlouquecem em piruetas aéreas. Sentem-se recompensadas pela tarefa de propiciar a polinização. Na cerimônia ininterrupta da fauna e da flora, pássaros, grilos e sapos dão conta da trilha estereofônica da imensidão. No alto dos serrotes, cabritos observam o horizonte com a mais pura tranqüilidade. É incrível ver o mais buliçoso dos animais “meditando”, olhando o tempo e se deleitando com a amplidão do mundo.

A diversão se torna mais plena quando a gente escuta todos os cantos da caatinga sem querer controlá-los, sem dizer como deveriam ser cantados. É mais fascinante ouvir as vozes soltas por prazer, para alegrar as manhãs, para encantar e seduzir parceiros, para voar, para espantar intrusos, para, enfim, exercer a liberdade instintiva de tornar o mundo mais belo. Os folguedos juninos são comemorações de fertilidade, nascidas por inspiração da natureza e crescidas na tradicionalização das culturas. Festas que atiçam os nossos corações.

 

 

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Os agentes culturais de Fortaleza parecem alienados desses conteúdos e as pessoas vão reproduzindo ao léu o que dá para expressar nas suas memórias modificadas pelo ritmo da cidade. Essa paixão coletiva poderia ser de grande oportunidade turística, caso não fosse vista simplesmente como coisa de periferia, passível apenas de se tornar atrações pontuais para gringo ver. Os grupos de quadrilha, tão presentes na animação da cultura popular, são contratados e expostos como grupos folclóricos. Quem visita Fortaleza sai com a impressão de que viu uma manifestação cultural que já não existe mais, ao passo que o fervilhamento faz parte do verdadeiro espírito da cidade.

As festas juninas chegaram com as caravelas do velho mundo e ganharam corpo Brasil adentro por ocasião das colheitas agrícolas e interesses literalmente paroquiais. Iluminados pela fartura, pelo amor e pelo calor das fogueiras, aprendemos a cultivar esses instantes de graça coletiva. Com o tempo, essas manifestações modificaram-se ao sabor do vigor cênico do espírito popular. As coisas mudaram, o mundo mudou e cada comunidade criou o seu modelo de quermesse, cada grupo um tema escolhido para as competições de quadrilhas.

Com a falência da nossa economia rural, essa cultura de chitão, mescla, calibaque e bordados alegres aportou na periferia de Fortaleza, reproduzindo os costumes do seu ambiente gerador. Ficou um restinho também arquejando pelo sertão. Essa expressão popular, embora verossímil, não está contemplada nos ornamentos luxuosos do desenvolvimento moderno. Para os defensores do progresso medido por crescimento de PIB, isso é coisa do passado, é coisa de pobre molambudo. Falar de regional, hasteamento de bandeira, rainha do milho, disputa entre os partidos azul e encarnado, queima de fogos, bandeirolas, leilão, fogueira e banda de

 

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música, para alguns déspotas esclarecidos, é asneira desmedida e acinte ao seu inquestionável fetiche primeiro-mundista.

Fogos, bandeirolas coloridas, gente se divertindo, amando e sonhando passaram a ser vistos quase como uma forma de desperdício social. O pensamento dominante em Fortaleza é que mão-de-obra que se preza tem mais é que estar ligada em não perder o emprego e ocupada em descobrir como manter o escorregadio status de consumidora. Quem tem talento para esse negócio de festa pode até ser aproveitado, como já disse, entretendo turista em hotel, shopping center e na beira-mar, entre cordões de isolamento e camarotes bem negociados. Os pressupostos observados nas entrelinhas das ações ligadas ao fortalecimento do nosso turismo e cultura, parecem preparar a cidade mais para os visitantes do que para os que nela habitam. E não há erro estratégico maior do que esse.

Carecemos de um planejamento orientado para a fermentação interna. Produzindo cultura e respirando cultura a ponto de nos sentirmos felizes nesse exercício, poderemos ter futuro, inclusive como destino turístico, além de contribuir para a redefinição do nosso lugar no mapa cultural do Brasil. Neste aspecto, desdenhar da força dos festivais de quadrilhas e sua fantástica mobilização nos bairros de Fortaleza, na sua região metropolitana e na interligação com alguns municípios, é um atestado de ignorância político-cultural.

Se com todo o abandono, desrespeito e omissão dos poderes públicos, econômicos, sindicais e acadêmicos, essa gente continua ralando para fazer a festa, é porque tem de fato um grande descompasso no ar. Não bastam as esmolinhas que determinados órgãos liberam, muitas vezes ainda sob as viciadas indicações

 

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de vereadores e deputados. As quadrilhas (de brincantes, diga-se de passagem) precisam sair dessa prisão filantrópica e eleitoreira. Esse modelo de crescimento quem-for-podre-que-se-quebre só iguala a periferia nas estatísticas de desemprego, pobreza e violência.

Com um pouco de humildade, um pouco de recurso e um pouco de tolerância, nossos governantes poderiam dinamizar esses festivais de quadrilhas juninas a ponto de se tornarem referência importante nas nossas desejadas políticas de equilíbrio social. O respeito às manifestações autênticas da sociedade, a descentralização das ações culturais, a geração de renda local e o estímulo ao convívio familiar e comunitário, são atitudes necessárias ao bem-estar coletivo e, conseqüentemente, à determinação de um processo de desenvolvimento. A valorização da festa no bairro é imprescindível para a retroalimentação cultural. Daí, para o turista desejar acompanhar os ensaios ou para os maiores destaques desfilarem em quadrilhódromos ou coisa que o valha, é outra história.

Atentas para o poder da cultura local algumas empresas, inclusive grandes corporações multinacionais instaladas no Brasil, têm patrocinado festas juninas em todo o Nordeste. É o chamado ataque praça a praça, a busca do consumidor onde ele circula em massa. As quadrilhas de Fortaleza contam pouco com esse tipo de apoio, simplesmente porque nós mesmos não nos damos importância, não nos reconhecemos, nem soltamos balões midiáticos para declarar que estamos vivos. Isso não acontece sem um grito organizado de “anavantú”, como a sabedoria popular passou a pronunciar a expressão francesa en avant tout que também chegou com as caravelas há cinco séculos e em poucas palavras quer dizer “todos pra frente”.

 

 

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Se essa cidade fosse minha

A bem da verdade, o grande problema da decadência exuberante de Fortaleza é o desprezo pelas manifestações populares. A cidade tem sido comandada pelo interesse dos espaços fechados e privados. Quanto mais os logradouros públicos forem percebidos como lugares perigosos, mais os donos dos shoppings faturarão vendendo o conforto da segurança. Desta forma, os lugares não-privados de convivência social vão perdendo um a um a sua importância como ponto de encontro. Pode-se dizer que ainda resta parte da praia cumprindo esse papel de aglutinador das gentes da cidade.

Até meados dos anos 80, do século passado, lugares como a Volta da Jurema, na avenida Beira-mar, era espaço de movimentação e curtição da juventude fortalezense. Era alcalina a bateria que acumulava tantos pores-de-sol, tanta adrenalina bem liberada, tanta carga positiva, coletiva. Esse burburinho acalorado migrou para as áreas refrigeradas da proliferação de shoppings. A adolescência foi trocando a vitrine de mar aberto pelo jogo de cintura em aglomerados de solidão e substituindo o prazer guardião de olhos multiplicados e inquietos pelo estado de segurança adestrada.

Articulada ou espontânea, o certo é que a ideologia da insegurança acabou também com as feirinhas semanais que aconteciam em várias praças da cidade, dentre as quais se destacavam a do bairro de Fátima, da Gentilândia e a da Praça Portugal. Todas tinham freqüentadores assíduos. Eram de intenso poder de atração, com suas apresentações de grupos de capoeira, academias de dança, vendedores de caipirinha e comidas típicas. Contavam também com artesãos e artistas plásticos populares, a exemplo do Eurico Bivar, com seus índios coloridos e seus poéticos cartões postais, papéis de carta e marcadores de livros. Não faz tanto tem-

 

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po, mas já é algo de um mundo não experimentado pela geração enclausurada nos centros comerciais privados.

Nessas horas é bom refletir que a existência de uma cidade acontece por necessidade histórica e não por exigência natural. Motivos, motivos e mais motivos levaram sociedades a construírem ambientes mais aglomeradores e de ordenamento social mais permanente. Muitas também foram as causas que deram fim a um sem-número de centros urbanos ao longo da história da humanidade. E assim, oscilando entre a pompa e o lixo, caminham as inchadas e mal resolvidas metrópoles contemporâneas.

A possibilidade de desaparecimento, esvaziamento ou de criação do pânico da cidade fantasma está ao sabor das nossas ações e atitudes enquanto cidadãos. O caso de Fortaleza é de fácil percepção, pois seu crescimento à revelia de um plano regulador está chegando ao limite do suportável. Vivemos em uma cidade cujo equilíbrio plástico é agredido pela realidade concreta, e não sabemos ao certo de onde vem o dinheiro para a aquisição dos luxuosos edifícios insistentemente erigidos por obra e graça de rompantes mágicos inexplicáveis.

A pujança cosmética de Fortaleza revela sinais evidentes de que se continuarmos assim acabaremos chegando lá. Lá aonde? É difícil esboçar uma noção específica. Se a nossa capacidade de produção econômica não respalda a suntuosidade de pedra e cal, granito e vidro, alumínio e cimento, edificada a toque de caixa, mantê-la ou não passa a ser uma questão dependente desse misterioso gerador de opulência, apontado por muitos como um entorno de lavagem de dinheiro e de assalto aos cofres públicos. A ostentação que testemunhamos, entre lamentáveis interrogações, não passa de uma fantasia de mau gosto.

 

 

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O festejado arquiteto Le Corbusier (1887 – 1965) pregava que a cidade deveria ser pensada como um todo mas, dentro das suas múltiplas funções destacavam-se a de habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito e circular. Recorrendo à sabedoria desse franco-suíço, pioneiro da arquitetura moderna, podemos ver que Fortaleza não atende bem a nenhum desses requisitos. Que cidade é essa? Como separar as pessoas do ambiente construído? Não há justificativa para tamanho aumento da densidade periférica, para o abandono do centro histórico, para o soterramento do que resta de referência do patrimônio cultural material e imaterial, para o congestionamento do tráfego, para o abandono dos parques e para a desenfreada apropriação privada do território coletivo urbano.

Habitamos uma cidade-sem-lei que precisa reconquistar o controle público dos seus rumos. Não existe desenvolvimento sem que as ações promovidas no espaço urbano estejam subordinadas aos interesses da população. A valorização dos bairros, das áreas de lazer, de estacionamento e das ruas é indispensável a esse processo. Como sonhar não é proibido, dá para imaginar os muros da Aldeota transformados pelo menos em cercas capazes de possibilitar o desfrute dos pedestres da beleza de incontáveis jardins, muitos deles pouco apreciados por seus proprietários.

Mas isso já é devaneio. Para quem mora em uma cidade que não tem calçadas, onde ninguém aceita andar um pouquinho mais para fazer retorno e facilitar o fluxo de veículos, onde o tráfego de transportes lentos é feito pela faixa esquerda, a sinalização é precária e mini-outdoors com apoio oficial tiram a visão nos cruzamentos com suas mensagens e desenhos ridículos, qualquer desejo contrário a essa barbárie parece capricho da imaginação. É isso, ainda resta a imaginação. Quem sabe, imaginando, a gente acabe captando que é hora de tomar atitudes adequadas ao valor que temos e não nos damos conta.

 

 

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O despertar da cidade

No lugar de uma visão de futuro coletiva, capaz de valorizar o que nos diferencia enquanto sociedade, temos apostado por via de regra em um crescimento individualista, ameaçador da nossa segurança cultural. Tudo isso é fruto da perplexidade de uma evolução sem rumo, onde cada empreendedor, cada agente de cultura, trata apenas de garantir a própria sustentação, imitando o que acha que rende mais e muitas vezes, no desespero, se submetendo à dinâmica do que não acredita.

Diante desse quadro de conotação suicida, o espírito obstinado que rege a cearensidade vem teimando na busca de novos caminhos que possam levar a lugares distantes da paranóia das sesmarias culturais. Muitas atitudes reveladoras de que as imposições da realidade não amputaram o desejo das pessoas, acabam surgindo do processo de formação de uma emergente consciência cidadã. Embora variando entre a necessidade da fé e a sensação de perda de tempo, a participação voluntária de grupos pensando a cidade no Planefor (Planejamento Estratégico de Fortaleza e sua Região Metropolitana), testemunha que esse feliz compromisso social com o futuro ainda não se entregou.

As propostas sistematizadas e indicadas por essas pessoas são disponibilizadas indistintamente aos governos e à sociedade, para que avaliem e, se for o caso, viabilizem a sua execução. Longe de sonhos oceânicos ou das tradicionais inclinações corporativas, nota-se que a intenção do Planefor com esse esforço tem sido facilitar a percepção de oportunidades que possam contribuir substancialmente para fortificar a auto-estima e ampliar a geração de renda da população. Trata-se de um conjunto estruturado de ações financiadas em formato de consórcio envolvendo as esferas governamentais, a iniciativa privada e a sociedade civil. Ainda as-

 

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sim, é muito pouco o aproveitamento desse tipo de convergência de forças.

Evidente que o material apresentado não contempla tudo o que se poderia imagina para o futuro de Fortaleza e seu entorno, mas é um passo importante para a vida da cidade. Tratam-se de propostas divididas em objetivos focados a partir da necessidade de preservação, potencialização e difusão de valores e produtos culturais, do estímulo ao auto-conhecimento e ao equilibrado usufruto econômico. Trabalhos preparados de maneira compartilhada entre diferentes, na busca do interesse comum. É de se convir que uma verdadeira inflexão na nossa cultura passaria por uma profunda discussão sobre desenvolvimento e mudanças de valores e de prioridades político-sociais.

Na parte de vitalização cultural, onde Fortaleza é mais carente, foram tratadas no Planefor algumas idéias que sugerem melhor aproveitamento do sistema educacional para o fortalecimento da cultura e a montagem de uma rede de difusão e circulação da produção local, a exemplo do Pólo Cultual do Benfica. A descentralização e a utilização dos diversos equipamentos públicos e privados existentes nos bairros de Fortaleza e nas cidades da RMF são reivindicações que não conseguem chegar aos dirigentes culturais. Um dos mais destacados erros na condução das manifestações culturais da cidade é a concentração dos investimentos públicos em espaços que facilitam a cooptação dos artistas pelas esferas governamentais.

O empobrecimento cultural e ambiental de Fortaleza se revela muitas vezes em rompantes de afinidades eletivas megalômanas e, mais claramente, no descompromisso deliberado com a cidadania. Um exemplo dessa exuberância de araque pode ser observado no processo de definição pela construção de um Museu

 

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do Mar no Ceará. Idéia indiscutivelmente boa, mas com uma historinha bastante ilustrativa de como tratamos de forma amiudada os temas públicos. É bom lembrar que nos anos 90, o renomado navegante paulista Amyr Klink esteve em Fortaleza instigando os cearenses a fazerem um Museu da Jangada. A paixão de Amyr pela tecnologia rústica de uma embarcação capaz de andar contra o vento, impulsionada pelo próprio vento, o levou a colocar gratuitamente o seu escritório de Planejamento e Pesquisa à disposição dos órgãos públicos, da iniciativa privada e das entidades da sociedade civil no Ceará.

O Brasil é considerado o país com a maior variedade de embarcações do mundo, por ter barcos ajustados as mais diversas condições dos seus quase oito mil quilômetros de costa. Amyr Klink, autor de best-sellers como “Mar Sem Fim – 360º ao redor da Antártica” (Cia das Letras) e “Cem dias entre o Céu e a Terra” (Editora José Olímpio) e assessor de expedições da Revista Nacional Geographic, tinha contribuído com a fundação do Museu Nacional do Mar, em São Francisco do Sul (SC) e estava disposto a colaborar na criação de um marco náutico em Fortaleza.

Nas discussões realizadas no então ambiente compartilhado do Pacto de Cooperação, colocamos para Amyr o desejo de ampliar o que seria um museu focado na jangada para um espaço caracterizado pelas manifestações culturais geradas a partir da relação da gente cearense com o mar, em seus 573 km de litoral. A idéia seria reunir pintura, música, arquitetura, poesia, enfim, a estética do cearense externada por conta da nossa ligação com o mar. Houve total flexibilidade para que fosse criado o Museu do Mar. Amyr Klink chegou a fazer propostas concretas, com argumentações e esboços gráficos. Não conseguiu romper a barreira das conversas, o iceberg da sensibilidade das nossas lideranças.

 

 

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Passa-se uma década com o assunto abafado. No início do ano de 2004 o governo cearense anuncia a sua intenção de fazer em Fortaleza algo parecido com o que seria o Museu do Mar. A notícia é espalhada como se fosse nova. Diz que o arquiteto é Oscar Niemeyer, que o museu terá uma forma que mistura nave espacial com diamante e que a sua localização será dentro do próprio mar, na altura do aterro acusado de irregularidades que a prefeitura fez na Praia de Iracema. É bom ressaltar que a razão desse hiato entre a proposta de Klink e o anúncio do nome de Niemeyer não tem qualquer justificativa de alternância de poder. O governo do Ceará e a Prefeitura de Fortaleza estiveram por todos esses anos sob o controle dos mesmos chefes políticos. Cada qual em seu território, mas permutando lideranças entre seus partidos numa astuta aliança de manutenção do poder.

Para completar o pêndulo da concentração na Praia de Iracema, o governo pretende construir um aterro de 30 hectares no mar para o funcionamento de um Centro de Feiras. Tudo em uma área cujo sistema viário já é caótico. A revitalização do entorno do Centro Dragão do Mar, com o desenvolvimento de eixos culturais e comerciais ligando a avenida Monsenhor Tabosa, a Praia de Iracema e o Centro é uma idéia antiga que merece ser retomada. Como esse, muitos outros espaços da cidade necessitam de reanimação, como é o caso do Pólo Cultural do Benfica, também estruturado em corredores interligados a partir do cruzamento da avenida 13 de Maio com a avenida da Universidade.

No final dos anos 90 houve uma grande articulação para a construção de uma torre na Praia Mansa que pudesse ter um restaurante nas nuvens. Passou. Pelo menos por enquanto. A desordem urbanística em Fortaleza é marcada por rompantes de megalomania e oportunismo. Propostas quase sempre insípidas que representam o triunfo da atrocidade sobre o ambiente. Obras sem

 

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qualquer traço do que de fato ocorreu neste chão, sem poder de narrativa e sem efeito pedagógico. A desurbanização de Fortaleza, marcada pela destruição das praças e pela eliminação do direito de visão do mar, pode ser caracterizada como um conjunto de acontecimentos arquiteturais improvisados que, destituídos de regras públicas, privilegia a esperteza dos que se apropriam do espólio da desordem.

A vulnerabilidade do contrato social, decorrente da privatização ilícita do poder público municipal em Fortaleza, produz uma deprimente e indelével violência simbólica. Nessa crise de representatividade das instituições a cidade passou a experimentar os efeitos de um certo estatuto cotidiano da desigualdade. Ao mesmo tempo se percebe um esforço de vontade cívica e urbanística manifestado nos diversos fóruns que se espalham em espaços de cidadania. É a lei da causalidade diante de um modelo urbano tão extravagante que a fúria de erigir prédios é mais importante do que habitá-los, ocupá-los comercialmente ou solucionar as questões de trânsito. Um modelo no qual não se constroem mais ruas. E quando acontece, como é o caso da Via Expressa de Fortaleza, a desconfiança das intenções emerge em contradições denunciadas pelos próprios semáforos, pelo reduzido limite de velocidade e, principalmente, pelo sistema de multas eletrônicas produzidas em série através de fotosensores ardilosamente distribuídos ao longo da avenida.

Quem vê Fortaleza superficialmente fica encantado com a sua aparente robustez. Mas o que está inchado não é sadio. É indispensável reconhecer que a cidade tem muitas edificações bonitas e feitas por gente séria. O que causa indignação a quem dirige o mínimo de atenção para o problema são as crescentes disparidades das ações segregacionistas. O despertar da cidade passa por um planejamento urbano integrado, capaz de organizar

 

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a expansão territorial e ser funcional ao mesmo tempo. O reaproveitamento dos equipamentos do centro, por exemplo, que já dispõem de infra-estrutura instalada, é bem mais em conta do que o deslocamento de favelas para conjuntos habitacionais. Qualquer solução desse ou de outro tipo, para ser eficaz, prescinde da participação da sociedade civil organizada nas discussões sobre reforma urbana. Definitivamente esta não é uma questão reservada aos especialistas, nem aos governantes de plantão.

Síndrome do parque abandonado

O fato de Fortaleza ser uma cidade litorânea e pacífica, tem contribuído para um grave problema na cidade: a questão das áreas de lazer. A pressão da população em cima dos órgãos públicos parece, nesse sentido, arrefecida pela opção gratuita da praia. Falta também uma mobilização significativa em favor da compreensão de que viver é efetivamente agir e tomar consciência da própria existência pela sensibilidade, pelo pensamento e pela ação. A luta pela sobrevivência leva muitos a não atentarem para a arte plena da vida, mas para esse discernimento tão bem refletido na obra do filósofo Karl Gottlob Schelle (1777 – 1825 aprox.), toda sociedade deve contar com a sua porção organizada.

Schelle incluiu no prazer de passear o canto dos pássaros e a música nos parques como evocação à noção de mundo ideal possibilitada pelos passeios em sociedade. Com foco na natureza e nas áreas públicas de lazer ele sacode a imaginação tempo à frente e alcança as nossas urgências cotidianas. “É incontestável que os passeios públicos de uma cidade podem ser incluídos no rol das necessidades essenciais da vida social”. Sua dedução avisa que numa cidade bem situada, bem delimitada e bem administrada, as pessoas se encontram sempre em saudáveis espaços coletivos.

 

 

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Para o autor de A arte de passear [Coleção Breves Encontros, Ed. Martins Fontes] o passeio em si não existe, ele é tão distinto quanto os lugares que se procura para passear. Assim sendo, é a disposição do espírito que, movido pelo prazer desinteressado, inscreve o passeio na arte de viver. Este aspecto do seu pensamento é interessante porque coloca o passeio a um só instante como local e maneira do passeante flanar coletivamente, apenas sendo receptivo e aberto, sem se violentar com análises idiopáticas. Mais do que uma atividade física passear é um exercício intelectual de observação ingênua destituído de coerção racional.

Os encantos de Schelle pelos Passeios Públicos tinham como modelo os jardins, bulevares e alamedas parisienses, na condição de “refúgios ao olhar e ao coração”. Tinham como impacto espiritual e físico a harmonia entre a mente e o corpo. Para usufruir de lugares bem arborizados, não apenas freqüentados por pessoas conhecidas, é preciso ter a capacidade de despertar o interesse pela natureza e pelo outro, sem se perder em considerações sobre os costumes de cada um. Na ponderação do filósofo, aquele que fica o tempo todo reparando o jeito do outro se vestir e de se comportar, como é extremamente comum nos atuais points dos shopping, submerge no próprio humor barato e tem pouca probabilidade de ser capaz de passear na companhia dos outros.

O uso prazeroso dos espaços públicos é sinônimo de civilidade em A arte de passear. A humanidade refinada aproxima-se da vida e bebe na fonte de satisfação da cidade compartilhada. “É preciso ser culto para usufruir do passeio (…) Um indivíduo comum que não tenha cultivado seu espírito não sente necessidade de passear”. Passear, neste caso, não significa apenas movimentar o corpo, como simples fenômeno físico, como se o espírito ficasse em repouso enquanto o corpo se mexe. Pela ação do corpo, o passeio coloca em movimento os mecanismos do espírito.

 

 

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O interesse do passeante pela natureza e pela companhia pública de outras pessoas, deveria ser prioritariamente de ordem estética, segundo Schelle. E para que se consiga alcançar esse estado de ingenuidade do coração e da alma, ele defende que a primeira condição é sentir-se livre. Inclusive do compromisso com as aparências. Passear é a liberdade de ir ao encontro da vida e de ser receptivo às coisas que nos rodeiam, desprovidos de interesses por demais intensos, “afastar-se do mundo sem dele fugir”.

A necessidade da relação direta dos seres humanos com a natureza, mesmo em condição de urbanidade, é ponto pacífico no discurso do pensador. “Não basta ler muitas descrições da natureza para poder beneficiar-se de sua influência. As descrições não são a própria coisa”. No seu discurso o filósofo trabalha a acolhida das diferentes impressões que os variados passeios provocam. Coloca em planos diferentes a opção do passeio em meio a outras pessoas, na natureza, a pé, a cavalo ou de carro. Cada qual com seus prazeres especiais, demonstrando que passear, mais do que uma sucessão de vagares é uma indispensável situação de sociabilidade ensejada pela prática da diversão renovável.

Nossa sombra comum

Assim como a compressão estética ocorrida nos modernos shoppings, a negligência do nosso auto-conhecimento pode ser observada sem muitos esforços no trânsito de automóveis nas ruas de Fortaleza, uma das principais cidades brasileiras em número de carros importados. Basta ver o exemplo do embate entre a vontade de dispor freqüentemente de sombras e a ausência de esforços para que elas existam. O manual de boa educação dos nossos condutores de veículos não recomenda o respeito a ordem de parada aos semáforos, quando existe uma sombra por perto.

 

 

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O garboso chofer fortalezense sente-se no direito de parar na sombra e pronto. Não importa se atrapalha o trânsito, quem está na frente se sente o dono da sombra. Mesmo quando falta um bom trecho para chegar ao sinal luminoso. Esse tipo de parada irregular normalmente provoca engarrafamentos. É um comportamento intrigante e desafiador. Ao mesmo tempo em que, por prática ou omissão, aceleramos o processo de redução do verde urbano, nossos reflexos condicionados demonstram o quanto desejamos a mais tenra sombrinha que seja. A busca por espaços nos quais possamos ter a sensação de nos refrescar passa por reações instintivas e trai a lógica dos descuidos do nosso primitivismo urbano.

Esse choque entre a vontade de dispor de sombras e a ausência de esforços para que elas existam é patente em toda a extensão da Praia do Futuro. Procura-se uma sombra para estacionar, mas elas são muito raras. Este tipo de conforto a ser oferecido aos clientes de barracas, restaurantes e hotéis fica como se não fosse percebido por ambos. E não é só em termos de cuidados com carros quentes e abafados que se nota a imprevidência. Poucos são os lugares capazes de proporcionar áreas verdes e cobertas de sombras como opção aos usuários de nossas belas praias. Como a maioria das pessoas se lamenta, mas ninguém reclama pra valer, ganha a quentura e o desconforto.

Comparando o quadro atual com fotos antigas de Fortaleza torna-se visível o descuido ocorrido com o verde na cidade. Era comum ter planta nas calçadas para as pessoas jogarem conversa fora ao sabor da boa brisa das sombras densas. Restam poucas das avenidas arborizadas. A chegada de fiação para energia elétrica, telefone, cabo de tevê e outros importantes serviços proporcionados à população foi escangalhando as árvores. É revoltante a grosseria desse tipo de poda. As árvores são imoladas com tirania e ficam de dar dó. Mas com tudo isso não deixam de levar adiante

 

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o impulso natural de nos presentear com bem-vindas sombras. Sombras que todos querem, mas poucos se dão conta de que é preciso cuidar. Derrubar árvore em nossa terra é tão impunemente tranqüilo quanto à omissão que nos abstêm de lutar para que permaneçam existindo para o nosso benefício.

Cada árvore que cortamos ou que deixamos alguém cortar desnecessariamente vai subtraindo qualidade de vida e reduzindo a beleza do claro-escuro, do verde brilhante e do frescor da nossa sombra comum. Sem o anteparo vegetal, os raios solares tomam conta do espelho dessa cidade plana. Manifestamos o transtorno causado pela elevação da temperatura. Xingamos o calor infernal que abala Fortaleza. Sofremos com tudo isso e parece que não nos damos conta de que a lamúria não resolve nada. Corremos além da conta para pegar uma sombra e não mexemos nada para que ela exista.

Viúvas e viúvos do verde é o que somos nessa cidade-cemitério da anti-ecologia. Tivéssemos um pouquinho de consciência do mal que nos fazemos com essa postura estupidamente resignada, trataríamos de reverter a situação degradante em que vivemos. O primeiro passo é a descoberta da importância da sombra em nossas vidas. O esforço para tal constatação é mínimo. Garanto. Está sob o nosso nariz, nas mais imprevistas atitudes cotidianas. Queremos mais sombra. Sentimos essa necessidade. Não há razão para esconder a hemeralopia que nos cega de tanta luz.

Produzir sombra. Eis a questão. Sombra para todos os pedestres e carros. Sombra para as crianças brincarem nas praças. Sombra na praia. Sombra com plantas de cheiro. Sombra com planta de todas as cores e flores. Sombra coberta de frutos. Sombra para descansar a vista. Sombra para namorar, para gazear, para sentir o vento

 

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circular. Sombra para a gente se encontrar. Sombra para guardar o ciúme do sol.

A ruptura especular

Observar Fortaleza tornou-se um exercício confuso para quem mora na cidade. O declínio da vida social e ambiental entra em contraste permanente com a ostentação da sua arquitetura inorgânica. O fenômeno urbano acontece como se estivéssemos em uma grande sala de espelhos, na qual as circunstâncias induzem deformações da nossa própria imagem. Achatados, alongados, desengonçados, enfim, separados do sujeito ao fluir do tempo. Essa crise de percepção agravou-se notadamente no período de quatorze anos (1990-2004) durante o qual o médico Juraci Vieira de Magalhães manipulou o carteado do cassino político em Fortaleza, com a anuência de um ambíguo acordo de cavalheiros com o senador Tasso Jereissati.

No meu livro Mobilização Social no Ceará – 16 anos de tentativas e 1 promessa de diálogo [Edições Demócrito Rocha, 2002), explico o que seria esse confortável convívio de divisão de poder no Ceará:

“Um com as rédeas do Estado e o outro com o controle da Prefeitura da Capital. Muitos analistas políticos entendem que a combinação de poder no Ceará nos últimos anos ocorreu entre Tasso e Ciro, mas olhando de perto, é possível observar que foi entre Tasso Jereissati e Juraci Magalhães. A distribuição seqüencial das duas administrações facilita essa compreensão: no governo, Tasso/Ciro/Tasso/Tasso; na prefeitura, Juraci/Cambraia/Juraci/Juraci”

A sucessão do terceiro mandato de Tasso no governo do Ceará (1998-2002) foi um drama digno de Odorico Paraguassu,

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o célebre personagem da novela satírica de Dias Gomes (1923-1999) imortalizado pelo ator Paulo Gracindo (1911-1995). Teve lavagem pública de roupa suja e a explicitação da aliança com Juraci Magalhães para forçar a pequena diferença de 0,08% que deu a vitória ao Governador Lúcio Alcântara no pleito de 2002. A relação política entre Tasso e Juraci volta à tona na eleição para Prefeito de Fortaleza, em 2004, quando ambos apóiam o deputado federal Antônio Cambraia para a prefeitura. Cambraia, que tinha sido prefeito pelo PMDB (1992-1996) de Juraci e passara para o PSDB de Tasso não consegue sequer chegar ao segundo turno. Mesmo contando com o apoio das máquinas do Estado e da Prefeitura.

De tanto tolerar a desfiguração da cidadania provocada pela sala dos espelhos, montada por esse jogo de realidade invisível, o eleitorado de Fortaleza decide encarar de maneira plena a sua tradicional imagem de eleitor atuante e dá um basta ao coronelismo urbano. Para imprimir uma derrota plena a essa gente que manda demais em Fortaleza e no Ceará, o eleitor fortalezense elegeu a jornalista e deputada estadual Luizianne Lins (PT) com 56,21% dos votos válidos no segundo turno, ficando o delegado e deputado federal Moroni Torgan (PFL) com 43,79% da votação. Uma eleição que transgrediu a própria orientação da cúpula do Partido dos Trabalhadores, que havia fechado acordo com o deputado federal Inácio Arruda (PCdoB) para ser a cabeça-de-chapa das esquerdas em Fortaleza. O descumprimento da aliança, gerado por uma crise interna no PT, deixou Inácio em situação vexatória e vulnerável ao apoio do PPS do ministro Ciro Gomes. Misturado na água toldada da campanha, o candidato do PCdoB foi jogado fora com a bacia dos rejeitados no pleito.

O desgaste de imagem motivado pela divisão da esquerda no primeiro turno levou a coligação Fortaleza Amada (PT/PSB) a

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eleger apenas quatro vereadores para um total de 41 vagas na Câmara Municipal. O PT de Luizianne elegeu três vereadores, mas nenhum da sua tendência política dentro do partido. No jogo da acomodação dos cargos, ela conseguiu deslocar um dos três vereadores do PT para uma regional administrativa e abriu espaço para um vereador do seu núcleo duro na Câmara.

Mesmo com o apoio de outros partidos de esquerda, de centro-esquerda e dos fisiológicos, a relação do Executivo com o Legislativo municipal nasce conflituosa. A tarefa é dasafiadora, quase um exorcismo. A ética do balcão de negócios é hospedeira de uma certa empatia mefistofélica reinante na coisa pública e na sua relação de cumplicidade com os corruptores privados. Modelar novas formas de relação exige tempo, paciência e habilidade. Neste caso, a situação da prefeita Luizianne pode ser comparada a do presidente Lula, que administra o País com apertada área de manobra para a execução dos seus sonhos e crenças políticas.

Há alguns processos políticos que se assemelham às alegorias dos contos de fada. O da eleição de Luizianne em Fortaleza é um deles. O eleitorado não votou na acepção lógica do discurso da candidata. Ao clamar o amor das pessoas pela cidade, ela amealhou sentimentos que revolveram o sentido de pertencimento em uma só representação identificada com a militância deixada de lado pelo racionalismo excessivo vigente no Palácio do Planalto. A exemplo de Alice, no País das Maravilhas de Lewis Carroll (1832-1898), é difícil contar exatamente quem sonhou tudo o que virou realidade. Luizianne entrou em uma corrida sem largada, definida por uma pista de linhas mal-traçadas e, como se tivesse repartido um bolo antes de cortá-lo, chegou ao cargo de Prefeita de Fortaleza. Para isso, potencializou o estilo “ptzuda” rebelde e, investida da força de uma Menina Superpoderosa derrotou o Macaco Loco do Moroni numa aventura digna de Cartoon Network.

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Impelida por esse psiquismo renovador ela assume o executivo da quinta cidade mais populosa do Brasil, depois de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte. Em Fortaleza as referências de concentração de renda e de desigualdade desfilam com desenvoltura pela cidade, entre inúmeros prédios luxuosos fechados pelos caprichos das especulações e um elevado déficit habitacional estimado em mais de 100 mil moradias. É uma cidade onde os escândalos na gestão pública ganharam naturalidade. Para restabelecimento da simbologia especular da prefeitura, que tinha sido deslocada para um centro administrativo, longe do acesso das pessoas, o gabinete da prefeita volta para o Palácio do Bispo, no centro, e a cidade toma fôlego para entrar na rota de discussão dos rumos da humanidade, candidatando-se para ser a sede do Fórum Social Mundial em 2006.

O círculo vicioso da dobradinha Tasso/Juraci (Estado/Prefeitura de Fortaleza) foi deliberadamente interrompido nas urnas. Resta saber quanto de força política e econômica será movimentado na tentativa de regeneração desse poder e quanto de expertise as novas energias políticas e sociais revelarão no sentido de consolidar alternativas a esse modelo que agride os interesses da maioria. Como em todo enigma a resposta já deve existir e o futuro estará com quem souber desvendá-la.