Ensaio publicado em:

Revista Releitura, Junho de 2008, nº 22 – Belo Horizonte: Fundação Municipal de Cultura

Livro ESCOLA – lugar de brincadeira, cultura e diversidade – MinC / UFC, 2018

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Dentre as transformações socioculturais ocorridas no Brasil, como conseqüência da planificação econômica do mundo, o revigoramento do Saci Pererê ganha destaque como elemento de força simbólica local em um sistema dominado pelo senso de obsolescência precoce. Esse fenômeno se expressa em um contexto no qual se percebe um crescimento ressoante da opinião popular e, ao mesmo tempo, uma redução vertiginosa da influência dos tradicionais formadores de opinião.

Enquanto os grandes meios de comunicação amaldiçoam os atributos da brasilidade, produzindo a desagradável sensação de que somos uma gente essencialmente violenta, corrupta e favorável à falsa esperteza, um outro país acontece fora dessa teia de significações escatológicas para reafirmar o poder criativo da metáfora, do lúdico, da afeição, da solidariedade e do sentido coletivo.

Nesse cenário vem eclodindo no seio da sociedade civil um sem-número de esforços para tirar o Saci da garrafa do folclore e devolvê-lo ao cotidiano brasileiro. As manifestações pela revitalização do mais representativo dos mitos nacionais não partiram dos planos de marketing, dos estudos acadêmicos, nem de ações promovidas pelas esferas formais de educação e cultura, embora já contem com a colaboração e o empenho de instâncias públicas e privadas mais abertas aos contra-fenômenos contemporâneos.

Essas manifestações fazem parte da construção espontânea de alternativas ao estilo de vida decadente imposto pelo fundamentalismo de mercado, no qual as escolhas pessoais refletem as exigências sociais do simulacro e não a liberdade e a satisfação plena do viver. No debate do Brasil de dentro estão situados novos territórios para as expressões culturais, independentemente dos saberes autorizados.

O que passa a ter sentido na realidade profunda e original da civilização mestiça em processo de aprimoramento no país não é o que está institucionalizado pelo discurso competente nem pela ideologia da homogeneização, mas o que se auto-evidencia como vivido e experimentado pelas pessoas, o que é compatível com seus desejos, necessidades e amadurecimento pessoal e comunitário.

O Saci está solto e o mundo do utilitarismo e da individualidade patológica passa a ser atingido por sua força de negação à linearidade das perspectivas da aparência. Ele não foi criado nem remodelado por encomenda. A origem do Saci é o ato imaginativo, a travessura e o espanto como experiência lúdica e mítica. Ele é filho da mata, um fauno concebido na fantasia nativa e negra, que ganhou a contribuição dos brancos, não dos exploradores coloniais, mas dos imigrantes, que foram acolhidos pelo Brasil para serem brasileiros.

Em 1917, quando o escritor Monteiro Lobato (1882 – 1948) fez uma ampla pesquisa para entender melhor a figura do Saci, ele chamou os interessados no tema de “Sacisólogos”. Em 1982, Gilberto Mendonça Teles, em uma obra descomprometida de qualquer corrente literária e cheia de encantos vocabulares na recriação do fazer poético, lança o sugestivo título “Saciologia

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Goiana” (Ed. Civilização Brasileira/INL, Rio de Janeiro), em uma clara alusão à presença do espírito lírico e satírico do Saci na sua inspiradora terra natal.

O estudo, a intuição, o interesse e a satisfação de vivenciar as relações de coexistência entre o real e o imaginário, desenvolvido por crianças, adolescentes, adultos e idosos no redemoinho metafórico do Saci vêm sendo divertidamente chamados de “Saciologia”. O aumento do número de saciólogos se dá curiosamente no momento em que, como ocorreu na passagem do século XIX para o século XX, a resistência da elite brasileira em aceitar a desconcentração de renda e da riqueza guarda assemelhamentos com o período em que a escravidão foi abolida no Brasil sem a devida integração dos escravos à sociedade.

No capítulo do livro “No Horizonte do Outro”, em que trata da cena analítica no mundo desencantado, a antropóloga Ondina Pena Pereira recorre ao universo da psicanálise para ilustrar o processo de transformação das atitudes e comportamentos resultantes da pressão exagerada da racionalização:

“Com o que chamamos de progresso da ciência, as forças misteriosas que povoavam o mundo desapareceram sob a força dos cálculos e da técnica. Tudo aquilo que era considerado excepcional no mundo primitivo, foi banido pelos homens modernos, que se empenharam na construção de uma existência onde seres e coisas tornaram-se disponíveis, utilizáveis, consumíveis” (PEREIRA, 2004: 55).

Associo essa ilustração da cena analítica à presença ativa do Saci na memória coletiva brasileira, ponderando que o espaço do divã é parte de um mundo não subordinado à conduta egocêntrica que permeia o mercantilismo da felicidade. No estilo de vida da massificação e do consumismo, que exaurem as relações entre as pessoas e os recursos naturais do planeta, os indivíduos são apartados dos benefícios das suas relações sociais produzidas no âmbito psíquico e tendem a reagir a esse vazio com a soberba de quem pretensamente não depende de ninguém para gerenciar a lógica da lei do valor em que reduz a própria vida.

O deslocamento de percepção que houve na modernidade com relação aos nossos medos saiu do plano extraordinário para ser um problema simplesmente real. Pereira lembra que antes as pessoas temiam o sobrenatural e usavam a imaginação a cada momento em que se deparavam com o inusitado, a cada momento em que as impressões familiares desapareciam, dando lugar ao estranhamento. Hoje, ela realça, o grande drama do medo se manifesta na convivência com o outro.

A exclusão dos mitos populares do convívio social, especialmente nos centros urbanos, afastou das pessoas a possibilidade de exercitar o medo de forma segura e criativa. Para as crianças esse distanciamento pôs a infância cara a cara com o perigo real da violência, sem muitas chances de aprendizado no plano das hipóteses. Meninas e meninos precisam exercitar suas inquietações ante a noção das ameaças reais ou imaginárias para poderem cuidar de suas pulsões e conviver de modo equilibrado com as situações correntes.

A solução de suposta segurança dos ambientes climatizados é melancólica e depressiva. O despertar para a presença do Saci e outros mitos ecológicos nas praças, nos pátios, nos jardins e em todas as áreas verdes das cidades é um ato de iluminação que certamente contribuirá para a quebra do preconceito que a necessidade urbana de afirmação tem nutrido desde a segunda metade do século passado pelas expressões da cultura rural. Além do encanto que carrega em si, o Pererê pode levar as crianças a perceberem que as árvores bebem da mesma água que elas bebem e que as plantas são muito boas no jogo da troca de oxigênio por gás carbônico.

Motivados pelo senso afetivo, pela reabilitação dos laços comunitários, pelo humor, pelo lúdico, pelo enfeitiçamento, pela articulação entre o espanto e a alegria, saciólogos das diversas regiões brasileiras estão realizando a festa do Dia do Saci, no 31 de outubro, mesma data do Halloween estadunidense. Trata-se de uma tática sugerida no Vale do Paraíba pela Sociedade dos Observadores de Saci, Sosaci, para frear o avanço dos mitos de identidade falsificada que estão interferindo negativamente na forma de ver o mundo das crianças e adolescentes brasileiros.

A festa do saci diferencia-se do Halloween no plano do consumismo por não apresentar a busca por qualquer modelo hegemônico e sim pela integração com diferenciação. A intensificação da presença do Saci em nossas vidas tem o sentido de popularização e não de massificação. Não há fórmula para uma festa de saci. As maneiras da festança devem atender as motivações e as peculiaridades de cada grupo, comunidade e região, guardando, inclusive, e principalmente, a relação que o Pererê tem com mitos locais. Essa particularidade torna a festa do saci cheia de misteriosas variantes.

Com a disseminação da festa do saci é normal que mercado faça uso do evento para vender serviços e produtos. Isso já ocorreu no início do século passado, depois da popularização dada ao mito por Monteiro Lobato, com o uso da figura do Saci em anúncios da máquina de escrever “Remington”, chocolates “Lacta” e até de loja de louças, com gravuras de saci tentando quebrar as “resistentes” peças de arte da tradicional loja paulistana Casa Freire, conforme aparece nas páginas de abertura e finais da edição fac-similar (1998) da publicação lobatiana de 1918. Não sendo o saci um diabinho politicamente correto, sua festa será sempre única.

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O diálogo entre o pensamento habitual e o mítico só é possível por ser a festa do saci um ritual de inversão, uma situação de vivência na qual os elementos significantes interagem e o conceito de verdade é embaralhado no redemoinho simbólico que o giroscópio do mito possibilita. Por isso a festa do saci é um acontecimento de imersão no humano em sua dimensão mítica, um evento de interrelação entre o ser e as fantasias que dialogam com a sua cultura.

A figura do Saci transita no campo cosmomórfico, cumprindo a função de catalisador para o fluxo da experiência fora das atitudes regulares do cotidiano. Com a festa do saci as pessoas se apropriam de um espaço de acolhimento da imaginação e experienciam o mito e não apenas sabem sobre ele, como ocorre normalmente no espaço de conhecimento do folclore.

O ano de 2007, nove décadas depois do surgimento da “sacisologia”, foi marcado pelo reconhecimento por parte da imprensa convencional da existência do Dia do Saci. Até no caderno Folhinha, da Folha de São Paulo do sábado 27/10/2007, talvez dos jornais sudestinos o mais resistente aos atributos da brasilidade, o Saci ganhou destaque. De uma maneira ardilosa, mas ganhou. Para provar que as “bruxas levam a melhor” nas festas para a meninada, o jornal paulistano fez uma enquete com cinqüenta escolas e as bruxas ganharam de 27 a 4. O Saci é exposto como derrotado, mas na verdade já contar com quatro escolas tendo acabado de entrar na disputa é na verdade um bom sinal de vitalidade.

No caderno Estadinho, do jornal O Estado de São Paulo, também do dia 27/10/2007, a capa foi do Dia do Saci. As bruxas do Halloween ficaram com uma chamada menor. De um modo geral a mídia começou a reconhecer o fenômeno e é isso o que interessa avaliar. Em uma história em quadrinhos sobre folclore, publicada na edição nº 33 da revista da loja de brinquedos Ri Happy, os mitos brasileiros chegam a lamentar o fato de não haver no Brasil uma festa com as dimensões do Halloween norte-americano. A revista Recreio, publicação da Editora Abril para o público infanto-juvenil, chegou a publicar na edição nº 398 o poema Halloween à Brasileira de Tatiana Belinky, no qual a escritora defende o Dia do Saci:

“(…) O Saci, que é bem brasileiro / Desbanca qualquer estrangeiro: / Todo original / Ele é sem igual – / O Saci, ele é um bagunceiro! (…) Ele fuma o seu pito e ri, / Ele apronta aqui e ali! / Ninguém o esquece / Porque ele merece / O Dia Nacional do Saci”(BELINKY, 2007: 20)

No Ceará, mais do que fazer o dia 31 de outubro todo de festa e debate com o Saci e sobre o Saci a Secretaria da Cultura declarou a data como evento comemorativo do calendário oficial do Estado. A Câmara Municipal de Fortaleza, a exemplo de outras cidades, criou o Dia do Saci no município, com votação simbolicamente realizada no dia 31 de outubro de 2007. A participação do Saci, no entanto, inclina-se a outras datas da vida social e cultural brasileira, tais como o Carnaval, a Semana do Meio Ambiente, o próprio Dia do Folclore, o Dia das Crianças e a Semana da Consciência Negra.

No capítulo “A Ideologia como Sistema Cultural”, do livro de artigos do antropólogo Clifford Geertz, está bem clara a definição de que a configuração do nosso pensamento é construída e manipulada pelos sistemas simbólicos que são empregados como modelos de outros sistemas. Esse entendimento reforça a tática de criação do Dia do Saci na mesma data do Halloween. A oportunidade de aproximação do Saci, de interatuar com ele, repercute como fator de energização política no comportamento brasileiro:

“Os sistemas de símbolos chamados cognitivos têm uma coisa em comum: eles são fontes extrínsecas de informações em termos das quais a vida humana pode ser padronizada – mecanismos extrapessoais para a percepção, compreensão, julgamento e manipulação do mundo. Os padrões culturais – religioso, filosófico, estético, científico, ideológico – são programas: eles fornecem um gabarito ou diagrama para a organização dos processos sociais e psicológicos, de forma semelhante aos sistemas genéticos que fornecem tal gabarito para a organização dos processos orgânicos”. (GEERTZ, 1989: 123).

O autor reforça que as referências simbólicas são necessárias para combinar os estados e processos simbólicos com os estados e processos do mundo mais amplo, considerando que o comportamento humano é extremamente plástico e guiado, predominantemente, por gabaritos culturais que, na organização dos processos social e psicológico desempenham papel fundamental nas circunstâncias onde falta o tipo de partículas de informações que eles contêm.

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A Saciologia é uma espécie de ciência intuitiva das gentes brasileiras que têm na figura do Saci um importante emblema de semelhança no múltiplo, a proporcionar-lhes celebração de pertinência. Poder ver o invisível, aceitar e enunciar a potencialidade da sua ação está no nosso jeito de nos encontrarmos como nação. A substância psíquica formada pela imaginação dinâmica aplicada à vida cotidiana desempenha um papel decisivo na reconfiguração do nosso sentido de destino.

O potencial de catálise do Saci Pererê permite uma nova dialética entre nacionalismo e xenofobia, ante as tensões sócio-psicológicas do jogo de construção e manipulação dos sistemas de símbolos. A reversão das estruturas simbólicas identificada na revitalização do Saci Pererê, como anti-herói da negação do consumismo e da massificação, recomenda respeito à abordagem empírica que circunda as questões-chave da atualidade e reformula o debate em um plano que privilegia o olhar da sociedade civil.

 

Referências

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. LTC, Rio de Janeiro, 1989.

LOBATO, Monteiro (org). O Sacy-Pererê – Resultado de um Inquérito. Edição fac-similar da obra de 1918, Gráfica JB, Rio de Janeiro, 1998.

PEREIRA, Ondina Pena. No horizonte do outro. Editora UNIVERSA – UCB, Brasília, 2004.