TERRA DO NUNCA

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FAC-SÍMILE

Ceará, Maranhão e São Paulo . O espírito de quem faz Música Plural Brasileira é assim: híbrido. Busca estreitar fronteiras e sente prazer em andar à margem de rótulos ou movimentos musicais. O jornalista, escritor e letrista cearense Flávio Paiva tá nessa. Acaba de tirar do forno Terra do Nunca , segundo disco autoral depois de Rolimã . Pra interpretar sua poesia chamou a cantora maranhense Anna Torres. De quebra, contou com o auxílio luxuoso do contrabaixista paulista Paulo Lepetit, que ainda assina todos os arranjos. Gravado no estúdio Lepetit Comitê, em São Paulo, Terra do Nunca é dedicado ao índio pataxó Galdino, que foi queimado vivo em Brasília.

V&A: Terra do Nunca é seu segundo disco, digamos, autoral. Que sentimento move esse trabalho?

Flávio Paiva: O sentimento de fazer esse disco com observações e uma linguagem mais urbanas tá ligada a um certo receio de Fortaleza acabar ficando maior do que a nossa capacidade de acompanhá-la. Meu medo é a gente ficar tudo com medo dentro de casa e as ruas cheias de violência. Se a gente aprender a andar nas ruas, a virar a noite, a viver a cidade, ela tem muito mais chance de ser uma cidade mais tranquila do que se todos resolverem se trancar dentro de casa e deixas as ruas entregue aos ratos. Então daí esse tratamento urbano. O que aconteceu? Reuniram-se três migrantes, de diferentes regiões do país, pra pegar o que têm em comum e fazer uma releitura da cidade.

V&A: É muito diferente do Rolimã, trabalho anterior?

Flávio Paiva: O Rolimã é um símbolo da criatividade infantil para quem tá nas ruas, é um disco de calçadas. É a mesma coisa que eu faço hoje quando falo em Fortaleza. Mas o Rolimã foi um presente da minha mulher, a Andréa, ou seja, ela que resolveu convidar meus amigos pra cantar. Achei legal e embarquei na história. A situação agora é então bem diferente. Esse disco surgiu da minha própria inquietação. Mas veja: tudo o que eu faço tá atrelado aos valores fantásticos que absorvi na minha infância. Nasci num interior super pobre, numa família de classe média dessa interior super pobre, mas tive uma infância profundamente rica. Fiz todas as coisas que toda criança do interior faz: pastorar ovelhas, cortar capim… Mas com uma conquista de uma liberdade: podia jogar futebol; junto com mais dois amigos, em 73, participei de uma banda cover dos Secos & Molhados – nos apresentamos em vários municípios do interior com cara pintada e tudo -; atrelado a isso tinham os grupos de teatro do município… Enfim… E nos sábados ainda ajudava meu avô na bodega. Essa bodega do meu avô era na Praça do Mercado. Ali tavam os cordelistas,os violeiros e eu adorava aquela história. A gente musicava muito cordel… Paralelo a isso, eu era leitor fiel da revista Pop, que seria a Bizz melhorada de hoje. Então a gente consumia Pink Floyd, Suzi Quatro, o Peso, uma das principais bandas de rock no Brasil dos anos 70… escutava Stevie Wonder, Brad, Beatles, Led Zeppelin, Black Sabbath… Isso tá muito dentro de mim.

V&A: Por que muito pouca gente se interessa em conferir um show ou ir na loja comprar um disco de algum artista cearense? Que desinteresse foi esse que ficou desde o Pessoal do Ceará?

Flávio Paiva: Olhe, eu vou contestar… Eu desconheço um artista no Ceará que tenha feito um show do tamanho do que o que a Kátia Freitas fez no último dia 17, na Biruta. Vim morar em Fortaleza em 76 e me lembro de um show do Ednardo no Paulo Sarasate que talvez somasse umas 500 pessoas, onde ele disse: “Eu sonhei que um dia eu cantaria na minha terra para uma platéia imensa e tal”. E essa platéia imensa era muito menor do que a que foi pro show da Kátia no Biruta. Eu adoro o Ednardo. Mas acho que estamos no melhor estágio que já vivemos na nossa música desde que o Pessoal do Ceará foi pro Rio de Janeiro. Em termos de música alternativa, isso acontece não só no Ceará, mas em todo Brasil. A dificuldade pra se perceber isso é porque a gente se viciou em movimentos, em rótulo: Tropicália, Pessoal do Ceará… Fantásticos! Só que agora é diferente… A dimensão é múltipla. O Brasil tá estourando em todos os lugares e o que tá surgindo é o que eu chamo de Música Plural Brasileira. Não precisamos mais de movimentos.

V&A: E o que é exatamente Música Plural Brasileira?

Flávio Paiva: É a gente sair dessa coisa de localizar na região. A bossa nova é uma música regional carioca que atingiu o Brasil. Tanto quanto o baião, tanto quanto o boi do Maranhão. O samba é símbolo da música brasileira por decreto do presidente Getúlio Vargas. Não foi natural. O rádio estava chegando ao Brasil, o presidente transformou o rádio num instrumento de promoção do nacionalismo, precisava de alguns símbolos e o samba foi escolhido como arma. São gêneros fantásticos, mas o Brasil não é só samba, só bossa ou só baião. É tudo isso. Então, o que ninguém tá percebendo é que existe um país nascendo musicalmente de uma maneira diferente, independente de rótulos ou de gravadoras. Agora, quantos morreram nessa batalha pra se chegar a isso? Por exemplo: tem um cara no meu disco, marginalizado, que foi simplesmente o responsável pela introdução da harmônia na guitarra brasileira: esse cara chama-se Lanny Gordin. Foi ele quem fez os principais discos da Tropicália. Então, pessoas como o Lanny, o Bocato, o Itamar Assumpção criaram um adubo pro que tá nascendo hoje.

V&A: Já se faz Música Plural Brasileira por aqui?

Flávio Paiva: Ainda não. Porque não tem cultura urbana. Só vai ter quando os nichos do sertão, litoral e cidade tiverem mais próximos. Agora, nós temos potencial. Falta explorar mais fundo essa diversidade. Olhe, temos Evaldo Gouveia e toda essa linha de canções românticas que ainda pode ser muito bem explorada em cima da obra de gente como Vilamar Damasceno, por exemplo… Isso é uma vertente. Nasceu no Ceará o maior compositor brasileiro desse século, que se chama Humberto Teixeira. O cara inventou o baião, pôrra, que é tão importante pra cultura brasileira quanto as esculturas do Aleijadinho. Temos um cara que não nasceu no Ceará, mas foi cearense mais do que ninguém, o Luiz Assumpção. Isso tudo tá tudo posto. Aí na área pop a gente tem a Kátia Freitas, Vallery Mesquita, Karine Alexandrino… Na área da MPB temos a Carol Damasceno, o David Duarte… Tem esses que tratam mais da cultura do sertão, que é o caso do Eugênio Leandro. Minha amiga, é incrível o que se pode com essa biodiversidade musical.