Mestre das cores: relembre entrevistas com Estrigas
Jornal O POVO Online, 03/10/2014

Foto: Iana Soares/O POVO
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O casal de artistas Nice e Nilo Firmeza, o Estrigas, no jardim do sítio onde moraram, no Mondubim.

Carreira do artista plástico confunde-se com a história das artes plásticas cearenses. Entre imagens e palavras, Estrigas deixa obra vasta

A casa no Mondubim é ícone para as artes plásticas no Ceará. Era lá onde vivia o artista plástico Nilo de Brito Firmeza, o Estrigas, que aos 95 anos deu adeus à vida terrena. Mas se o corpo padece, a obra dele permanece e ainda deve inspirar muitos artistas aqui e no restante do País. Como pesquisador e artista, foi quase um século dedicado às artes no Ceará. 

Fundou em 1969, juntamente com sua esposa, a artista plástica Nice Firmeza, o Minimuseu Firmeza (ou Firmezarte), no sítio em que residia. Escreveu, entre outros livros, Aspectos Pré-Históricos no Ceará (1969), A fase renovadora da Arte Cearense (1983), Contribuições ao Reconhecimento de Raimundo Cela (1988), Barrica: o Alquimista da Arte (1993). Entre seus trabalhos mais conhecidos, está o painel de pastilhas instalado na fachada da J.Macêdo Alimentos, no Mucuripe, em Fortaleza, uma homenagem ao navegante espanhol Vicente Yáñez Pinzón.

O bruxo do Mondubim, como também passou a ser chamado, contou que divida o dia entre pintar, escrever, ler, pensar, ouvir música e brincar. O registro ficou em um de seus peomas: ‘‘O ser que se é’’, ” sempre assim/como assim se quer/ como assim se faz/ como assim deve ser/ o ser que se é/ sempre assim/ser /fazer… ”

Às vésperas de completar 94 anos, vivia uma rotina pacata na casa em que passou tantos anos com a esposa, Nice Firmeza (1921-2013), com quem foi casado durante 52 anos. “Depois que a Nice morreu, esfacelou-se uma porção de coisa”, explicou ao O POVO. Juntos, formaram o casal mais admirado das artes plásticas do Ceará. A dedicação e o amor mútuo foi retratado em Páginas Azuis do O POVO, em março de 2009: 

O POVO – Como vocês chegaram aqui nessa casa no Mondubim?
Nice – Essa aí ele responde. É do lado dele. 
Estrigas – Eu cheguei aqui no Mondubim ainda criança. Quando meu pai comprou esta propriedade, eu ainda não estava nascido. De forma que eu posso dizer que desde que nasci eu ando por aqui, mas era uma casa antigamente para o fim-de-semana, para temporadas, para férias. Nesse negócio, a infância foi correndo, chegou a adolescência. Aí o tempo foi
comendo a gente, a gente comendo o tempo, e estamos hoje aqui. Aí veio a sociedade dela.

OP – Mas quando o senhor passou a morar definitivamente aqui? Estrigas – Pois é… Ela (Nice) entrou na jogada em 1961, a gente veio para cá e ficamos até hoje.
Nice – Ninguém queria morar aqui, e ele (Estrigas) era louco por isso. Ele não andava na Aldeota.

OP – Este ano o senhor completa 90 anos. Como o senhor se sente?
Estrigas – Primeiro, tem o que o (pesquisador) Gilmar de Carvalho fala… Ele me deu uma casa. Ele disse: “Estrigas, você está na casa dos 90”. Muito bem, por conta da casa dos 90, eu cheguei à última fase da vida. Você passa pela infância, pela adolescência, pela maturidade. Aí chega no fim da carreira. Eu me sinto um viajante que passou por essas estações todas e está na última estação. Depois dessa última, não sabe onde a estrada vai sair. Eu fiz essa caminhada. Foi feita com coisas boas e não boas, mas não prejudiciais. Hoje eu estou curtindo a última fase. As pessoas chamam terceira idade, eu chamo de última idade. (Nesse momento, Estrigas pede licença para se retirar do local da entrevista).

OP – Vocês não tiveram filhos. Isso modificou a vida de vocês?
Nice – Eu acho que foi melhor. Quando a gente encontra uma pessoa boa que dá certo… Nunca tivemos aborrecimento. Todo mundo tem seus defeitos e suas qualidades. Foi melhor não ter tido filhos. Eu penso de uma maneira e o Nilo pensa de outra… Essa questão de educar é muito complicada. Nós temos muitos filhos adotivos. O Gilmar de Carvalho, o Bené, o Flávio Paiva, o Carlos Macêdo. Eles vêm aqui e preenchem muito bem esse espaço. Nós também precisamos de tempo para pintar. Eu gosto de bordar também. Dou aula de arte educação. Eu vi como a arte a educação ajuda muito a criança. Eu ainda dou aula com essa idade, porque eu não tenho coragem de deixar as criancinhas.

OP – Como surgiu a idéia de criar o minimuseu?
Estrigas – A gente já tinha um princípio de acervo. Resolvemos então aproveitar o espaço para ir colocando o pequeno acervo que a gente tinha. Foram levando em frente. Os artistas foram doando também. Alguns a gente comprava. Aí foi desenvolvendo. No intuito de fazer um local onde se pudesse pesquisar sobre a arte do Ceará, vendo os artistas que fizeram essa história e seus trabalhos. Eu organizei essa sala que eu chamei de Sala Histórica. É uma mostra através de toda a arte a partir da pré-história. Você não encontra isso em canto nenhum. Nice – Assim, como não encontra em canto nenhum um Estrigas para explicar tudo da arte sem cobrar nada de ninguém.

OP – O pai do senhor (Hermenegildo Firmeza) foi professor da história da civilização. O senhor acredita que vem daí o seu interesse pela arte e pela memória?
Estrigas – Entre muitas atividades, ele foi professor. Sempre convivi com livros. Tinha boas livrarias. Eu li muito Jorge Amado, muita Literatura Brasileira dos livros que meus irmãos compravam. Isso fora a biblioteca do meu pai. (O trem passa) Eu tinha um irmão (Mozart Firmeza) que foi aluno da Escola Nacional de Belas Artes (no Rio de Janeiro). Foi até colega do (artista plástico Candido) Portinari. Eu tenho um momento gravado na cabeça em que ele (Mozart), numa das vindas ao Ceará, pegou na minha mão para fazer um perfil. Também lembro de um livro dele sobre desenhos. E um pedaço de lápis carvão, que eu ainda tenho. Tenho a impressão de que isso influiu. Mas influía todo o ambiente.

OP – Mas de onde veio mesmo esse gosto pela arte?
Nice – Eu não sei. Quando eu via aquelas revistas, com paisagens,
eu sempre gostava. Ninguém me incentivou. Quando a mamãe sentia falta de mim, ela sabia onde me encontrar. Eram duas casas apenas no Aracati que tinham quadro. Ela já sabia que eu estava lá, olhando os quadros. Então ela me colocou na aula, mas não deu muito certo…

OP – Mas voltando ao encontro de vocês, por meio da Scap. Como foi esse processo de criação da Scap?
Estrigas – Antes da Scap, houve o Centro Cultural de Belas Artes, que foi o resultado da liderança do (pintor Mário) Baratta, com os artistas daqui. Até então, viviam dispersos. Cada um em seu local de trabalho profissional. Essa primeira entidade de artes plásticas foi feita pelos artistas e como o objetivo de reunir, de dar um local para o trabalho artístico, onde houvesse uma biblioteca. Isso em 1941. Foi daí que começou a haver salão de pintura. Mas a situação da entidade era muito precária de dinheiro e ficava pulando de um local para outro quando podiam. Se alugava e não tinha como pagar, acabava sendo despejado. Em 44, o Centro Cultural de Belas Artes desapareceu. Não teve mais condição, mas surgiu uma outra entidade, formada pelos mesmos artistas, mas já pelo apoio dos jovens também no ramo da literatura, que passou a se chamar o grupo Clã. A Scap assumiu e desenvolveu a atividade dos artistas junto aos escritores e gente das artes plásticas. Com a Scap, vieram outras instituições. Veio o Salão de Abril, que a Scap pegou da UEE (União Estadual dos Estudantes), que foi quem criou e começou o Salão de Abril. A Scap pegou do segundo e foi fazendo anualmente. Lá surgiu e passaram por ele os grandes artistas do Ceará, como Raimundo Cela, (Antonio) Bandeira, Aldemir (Martins), Barrica, Zenon (Barreto), Sérvulo Esmeraldo, Barbosa Leite, Raimundo Garcia.

OP – Como era o cotidiano artístico na época?
Estrigas – Nessa época, era um permanente contato que se tinha e não de grupinhos separados. Era no Centro, no coletivo. Os locais de encontro eram os cafés, as livrarias e a Praça do Ferreira. Nessa época, a Praça da Ferreira era um local obrigatório das pessoas.

Fonte: Jornal O POVO