Sacis, bruxas e Zé Pilintra
Diário do Nordeste – Caderno 3, 29/10/2016

Festa de origem céltica, com correspondentes em países americanos, asiáticos e europeus, o Halloween é celebrado no dia 31 de outubro. No Brasil, chegou via cultura pop e se fortalece como fenômeno comercial. A pegada consumista encontrou, no País, um rival: o mitológico Saci

 

 

 

 

Por Felipe Gurgel – Repórter

 

Halloween, Allhalloween, All Hallows’ Eve, All Saints’ Eve – ou, como convencionou-se chamar no Brasil, o Dia das Bruxas, é celebrado a cada 31 de outubro. Paralela às comemorações, a data foi oficializada, em algumas cidades brasileiras, incluindo Fortaleza, como o Dia do Saci.

Na capital cearense, o dia foi instituído através da lei Nº. 0189/2007. A justificativa, endossada pelo vereador Guilherme Sampaio (PT), aponta que “a escolha do dia 31 de outubro, quando é comemorado o Halloween (Dia das Bruxas) nos EUA, festa que a cada ano atrai mais crianças brasileiras, é proposital. A intenção deste projeto é ensinar as crianças que o País também tem seus mitos, difundindo a tradição oral, a cultura popular e infantil, os mitos e as lendas brasileiras”, destaca a legislação municipal.

A Câmara dos Vereadores do município de Independência (CE), a 310km de Fortaleza, aprovou a mesma instituição, através da lei municipal Nº. 285/2010. A provocação, de celebrar o Saci ao mesmo tempo que o Dia das Bruxas ganhava espaço como festejo no Brasil, foi articulada pelo movimento da Sociedade dos Observadores do Saci (SOSACI). A organização, sem fins lucrativos, reúne intelectuais e pesquisadores envolvidos com a questão da cultura brasileira, incluindo o escritor e jornalista cearense Flávio Paiva.

Paiva, autor dos livros infantis “A festa do Saci” (2007) e “Se você fosse um Saci” (2012), conta que o escritor Mouzart Benedito percebia o crescimento das festas de Halloween no país. Benedito observou que, no início dos anos 2000, 40% das escolas públicas de São Paulo chegaram a incluir a festa em seus calendários.

“Então, nós compramos a ideia do Mouzart de trabalhar o dia 31, para criar sim um desconforto. Quando você cria um desconforto, produz perguntas e interpretações. E as pessoas começaram a se questionar sobre o Halloween”, explica Flávio Paiva. A ideia era contrapor uma celebração não-consumista à “massificação” do Dias das Bruxas americanizado.

O escritor é responsável pela concepção da Festa do Saci que ocorre hoje (29), a partir das 14h, no Centro Cultural do Banco do Nordeste (Rua Conde D`Eu, 560, Centro), com o músico Gustavo Portela e o Grupo Formosura de Teatro. A comemoração foi antecipada dois dias, para se adequar à programação do centro cultural.

Coexistência

A coexistência das duas comemorações – Dia das Bruxas e do Saci – não necessariamente é conflitante, em termos conceituais. Segundo o antropólogo cearense Oswald Barroso, ambas as manifestações são sintomáticas da retomada do homem em relação à natureza. De uma percepção que o homem não é alguém superior, e sim um agente em “relação” com o natural.

“Penso que existe uma correspondência entre todas essas entidades mágicas. Às vezes, elas têm nomes diferentes, mas têm correspondências arquetípicas. Há bruxas em todos lugares, só mudam os nomes”, observa Oswald. O antropólogo percebe que, “rigorosamente”, o Saci é ainda mais associado ao Sul do Brasil, enquanto que mitos como o do Caipora são mais difundidos no Ceará.

A gente deve é juntar o Saci, o Halloween e outras entidades. Sou catimbozeiro, reivindico a entrada do Zé Pilintra nessa comemoração também!”, sugere Oswald Barroso, se referindo à entidade “malandra” ligada ao catimbó e à umbanda.

Global

Citando o pensador argentino Nestor García Canclini, o professor Tadeu Feitosa, do Departamento de Ciências da Informação da Universidade Federal do Ceará (UFC), pondera o “contágio” do Halloween em relação à cultura brasileira. “Canclini é muito feliz ao dizer que a globalização não foi ‘global’ nem no plano econômico, que dirá no cultural. Isso faz com que aquela manifestação global ainda tenha um ‘quê’ de local”, coloca.

“A indústria cultural geralmente se apropria de modo comercial. Mas o importante é manter os mitos atualizados. O Saci me agrada muito, porque ele é um transgressor, um anti-herói. O Monteiro Lobato teve essa sacação, de criar dois anti-heróis, a Emília e o Saci. Inventivos, são a cara dessa brasilidade”, conceitua.

Tadeu aponta que se o Dia do Saci se tornasse uma data comercial, haveria o risco do fato “roubar” a verdadeira essência da lenda. No entanto, ele cita a histórica série televisiva do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” como um exemplo de apropriação positiva (e industrial) do mito. O pesquisador se refere à segunda adaptação deste universo literário de Lobato para a TV, produzida pela parceria Globo/TVE, que estreou em 1977 e ficou no ar até 1986.

“O (diretor) Geraldo Casé (1928-2008) foi muito feliz na adaptação da obra do Monteiro Lobato para a TV. A TV brasileira estava preocupada em fazer coisas boas. E a gente tem que dar, primeiro à literatura do Monteiro Lobato, essa qualidade de atualizar o mito do Saci”, distingue o professor. Em segundo plano, ele situa, nessa qualidade, a teledramaturgia nacional e todas as edições de oito anos do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”.

Para além da indústria cultural, Feitosa vislumbra outro tratamento para o Saci no ensino básico. Ele reconhece uma forte ligação do mito com a infância. “E uma transgressão, permitida no tempo e no espaço da infância, é importante que seja celebrada, ritualizada. A escola precisa trabalhar isso melhor: deixaria de criar tantas barreiras ao imaginário infantil”, sugere.

Fonte: Diário do Nordeste