Personagem querido do Folclore nacional, o Saci é festejado neste 31 de outubro. Mas o que esse ser encantado e travesso da cultura brasileira fala da nossa própria identidade?

Por Luiza Ester

Perto da lagoa, numa casa de quintal com chão de terra batida, galinhas, cacimba e árvores frutíferas, uma menina costumava brincar toda tarde no seu balanço. Ali, entre as gargalhadas, havia espaço para o íntimo, os excessos e a aventura. Certo dia, esse encantamento a visitou em seu quarto, durante a madrugada. Com a pouca luz das brechas das telhas velhas, viu a sombra de um menino serelepe. Ele pulava, rodopiava, ia de um lado para o outro. A pequenina chamou seu pai para observar – mas o adulto saiu do cômodo ao lado para dizer: “vá dormir”. Naquele instante, o menino dançante acenou como quem diz “tchau” e nunca mais apareceu.

A história, acontecida com esta repórter que vos escreve, é uma das inúmeras que permeiam o imaginário popular de um Brasil cheio de seres fantásticos – tal qual Carlinhos Brown canta na música “Pererê Peralta” (2001): “negro como a noite quase que despido, pula, pula, some e dança / como uma criança segue seu destino / se esconde na floresta”. Hoje, data em que se celebra o Dia do Saci, aproveitamos falar desta festa que ajuda a manter vivas imagens e narrativas folclóricas do nosso povo.

Mouzar Benedito, escritor, jornalista, geógrafo e fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), descreve o tão popular travesso: “negrinho, de uma perna só, com gorro mágico na cabeça e que gosta de aprontar traquinagem”. Símbolo da cultura nacional, a figura do Saci acha-se nas brincadeiras, nos assobios, redemoinhos e em todo encantamento do ser-criança.

“O Saci sintetiza os três povos que formaram o brasileiro: o indígena, o africano e o europeu”, contextualiza Mouzar. Segundo o mito dos povos indígenas guarani – das fronteiras entre Brasil, Paraguai e Argentina -, o Saci era um curumim, um deus menor que ajudava as pessoas perdidas a saírem da floresta. Os portugueses, ao explorarem as terras brasileiras, o transformaram a divindade em “demônio com chifres e cheiro de enxofre” como parte da dominação cultural.

Ainda de acordo com Mouzar, quando milhares de pessoas foram trazidas à força da África, o saci passou a ser preto – atrelando mais uma demarcação de inferioridade pelo preconceito racial. Aos poucos, os escravos se apropriaram do mito indígena – ele perdeu a perna e ganhou um cachimbo. Muitas vezes, ao serem encurralados pelos seus senhores por algum erro ou rebelião, diziam: “foi o Saci”. Depois, a figura ganhou o gorro vermelho típico da cultura europeia. “Na Revolução Francesa, usavam gorros iguais aos do Saci”, diz o fundador da Sosaci.

“A liberdade é uma questão muito frequente nas nossas lendas sobre o Saci”, analisa Mouzar. Para o escritor, o saci representa o povo brasileiro. “Apesar de ter muitos motivos para ser infeliz, ele é alegre, gozador e brincalhão. Encara as durezas da vida com alegria, mas sem perder a capacidade de questionar”. Mouzar lembra sobre a necessidade de valorizar o que caracteriza o Brasil e, nessa cruzada, festejar seus entes imaginários, contar suas histórias e reverberar a cultura popular e caipira.

Para o jornalista e escritor Vladimir Sacchetta, membro e também fundador da Sosaci, o personagem reflete a fantasia brasileira e está introjetado na identidade nacional. “O mito foi apropriado por Monteiro Lobato no começo do Século XX e se tornou esse serzinho travesso, que está no imaginário de todo mundo. Ele não faz mal não, faz travessuras”, conta. A série de livros “Sítio do Picapau Amarelo”, com histórias do Saci e os seus amigos, foi adaptada posteriormente para a televisão. O personagem ganhou adaptações para diversas outras linguagens, como os quadrinhos da “A Turma do Pererê”, de Ziraldo – que também teve versão seriada para TV.

Segundo Vladimir, a criação da Sosaci contou com a “ação guerrilheira geopolítica” de 13 pessoas. Em 2003, o grupo se uniu em defesa da cultura popular e da difusão da tradição oral na cidade de São Luiz do Paraitinga, no interior de São Paulo. Desde aquele ano, a organização festeja o Dia do Saci em contraponto ao Dia das Bruxas (ou Halloween), comemorado neste dia 31.

“O Brasil é tão rico, não tem porque importar mitos. A gente pode exportar Saci para fora, em vez de ficar trazendo de fora para dentro. Não como uma atitude de xenofobia, mas para chamar atenção para os nossos mitos”, reforça Vladimir. O Dia do Saci foi instituído oficialmente em 2004, no Estado de São Paulo. A comemoração ganha cada vez mais adeptos pelo País. No Ceará, a data foi oficializada na Capital em 2007 e na cidade de Independência em 2010.

“Moleque levado saci-pererê”

Na canção “Quintal” (1992), Bia Bedran, compositora, cantora e contadora de histórias infantis, menciona o “moleque levado Saci-pererê”. A faixa integra o universo de músicas com histórias do menino. Ele brinca no quintal, quer andar solto no mato, mas “vive trancado dentro de você”.

“Esse moleque é a nossa meninice interna que jamais deve morrer, pois representa em nossa alma, corpo e coração a vitalidade saborosa da sabedoria popular. O saci-pererê é um ser travesso, que dá nó em pingo d’água e segue pulando sobre as questões da vida”, reflete Bia.

Para a artista, o folclore brasileiro é rico, cheio de cores, sabores, melodias, ritmos, danças e histórias. Esses elementos diversificados podem contribuir para a inspiração e criatividade cotidiana. “Ele desenvolve não somente nosso imaginário coletivo, mas, sim, nossa capacidade de olhar o mundo sob diversos lugares de pensar e agir”, contempla a artista.

De acordo com Marisol Albano, arte educadora ambiental, “é importante permitir que o saci exista dentro de nós”. Cada brasileiro deve abrigar essa criança moleca, curiosa, misteriosa, engraçada, debochada, irreverente e espontânea. “Ele tem a ver com nossas raízes e crenças. Tem a ver com não se distanciar, procurar manter conexões que estão ameaçadas de extinção – conexões com a natureza, a sabedoria popular e a contação de histórias. Trata-se de compreender esse fio mágico que perpassa gerações e territórios”, reflete.

Marisol, também bióloga, permacultora, escritora, cantora e compositora, é idealizadora da comunidade de aprendizagem Ilha Maravilha – espaço do brincar, em Fortaleza. Para ela, as pessoas estão cada vez mais esquecidas de si mesmas, do olhar para dentro e de cultivar relações. “A gente é natureza. Ao entrar na floresta, sentimentos a presença de uma força de vida, algo misterioso e encantado, que não dá para explicar em palavras. A razão não consegue alcançar. E o saci tem a ver com pé no chão, pé na terra, árvores e assobio do vento”, conta.

“O saci personifica a relação de seres humanos divinos e falíveis”, diz Marisol. Esse menino de uma perna só também abriga a noção da incompletude humana. “Nós somos incompletos, sempre vai faltar um pedaço. “Abraçando isso, nós conseguimos um tanto de paz. A vida é esse mistério e essa descoberta. Perde a graça quando a gente tem tudo muito sob controle. Precisamos estar seguramente fora de controle, abraçando o incontrolável, o indizível, o impermanente. Esse mistério da vida. A grande graça é essa busca, esse salto, mesmo com a perna só. Brincando, rindo de si mesmo e dançando com o vento, nesse grande redemoinho que é a vida”.

Trilha do Saci

O Museu Brinquedim, em Pindoretama – a 43 km de Fortaleza, reúne o acervo do artista plástico Dim Brinquedim. Brinquedos, telas e esculturas integram o visitante num passeio pela natureza e pela arte do brincar. No local, há a Trilha Ecológica do Saci – onde crianças exploram a natureza em busca da escultura do menino Pererê. “Elas fazem uma caminhada cheia de encantamento e curiosidade, ficam felizes quando o encontram. O Saci é um ser brincante e a trilha é essa brincadeira, cheia de vida e magia”, conta Dim.

O que: Trilha Ecológica do Saci no Museu Brinquedim
Quando: de terça a domingo, das 9h às 17 horas
Onde: Estrada da Coluna, km 20, s/n, Alto Alegre, Capim de Roça — Pindoretama
Mais info: www.museubrinquedim.org.br

Festa Virtual

Em 2020, devido à pandemia da Covid-19, a Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci) comemora o Dia do Saci de maneira virtual, com bate-papo com o pesquisador de cultura popular Alberto T. Ikeda, às 11 horas, e “live surpresa” à tarde.

Quando: hoje, 31
Onde: YouTube da Sosaci e Instagram @sosaci_slp

Para assistir

“Todos esses duendes que não têm o que fazer, e ficam por aí fazendo arte, servem para deixar a vida um encantatório. A vida tem que ser encantada. Quem não tem imaginação para sonhar coisas, sonha com o Saci. É o mito do encanto”, diz a escritora, cronista e educadora Ruth Guimarães Botelho (1920 – 2014) no filme documentário “Somos Todos Sacys”, dirigido por Rudá K. Andrade e Sylvio do Amaral Rocha.

O que: “Somos Todos Sacys”, de Rudá K. Andrade e Sylvio do Amaral Rocha
Onde: plataforma Vimeo

 

Ler e sacizar

Mantido por alguns anos engarrafado, prisioneiro nos porões de uma velha máquina de escrever, o Saci é resgatado por seres fantásticos. Na história “A Festa do Saci”, do jornalista e escritor Flávio Paiva, real e imaginário se encontram de forma lúdica para atravessar questões diversas, como o consumismo. A obra, que tem ilustrações de Glair Arruda, acompanha CD
com ritmos que perpetuam a lenda.

72 páginas
Editora Cortez
Preço médio: R$60