Primeiro ela lançou-se ao oceano da canção de navegar com o álbum Maritmo (1998), neologismo de marítimo em ondulações de parangolés. Dez anos depois foi a vez de velejar com o repertório de Maré (2008) por sargaços de encontros e despedidas. Passada mais uma década e a obra de Adriana Calcanhotto toca à Margem (2019) da vida líquida, em águas cheias de lixo do egoísmo em transe, onde se afoga muito da paixão pelo planeta e da vontade de amar.

Nessa travessia de duas décadas por mares de amores, seus versos flutuam mareados por gestos nostálgicos, saudosos, líricos e contemplativos. Nas nove faixas do novo álbum, Adriana canta as aflições dos corais, dos cardumes, dos balseiros, dos náufragos de sonhos e de utopias. E recita “o plástico do mundo no peixe da ceia” (Ogunté) em sons de palavras dramáticas, como uma crônica de apocalíptica desoxigenação do mundo.

Adriana Calcanhotto sente o sufoco do mal de escala, da grandeza sem beleza, da borracha de tempos sombrios apagando a linha do horizonte. Cantarola “contra o que margeia” (Lá lá lá) em palmas de samba de roda, cadenciando o movimento dos significados de amar, nadar, mergulhar, pescar e de sentir o frescor das águas revoltas. Lá, na imensidão de uma balada “de trás do avesso do véu” (Tua), em pulsante paixão devotada.

A mensagem do vento guia a voz da cantora levando o barco-poema de Antônio Cícero, com melodia de Zé Miguel Wisnik, para onde passa o tempo e fica a melancolia, lembrando que “nada impede que se afundem / neo-Atlântidas e arranha-céus” (Os Ilhéus), cruzando liricamente águas agitadas ao som de uma linda e romântica guitarra portuguesa (Era Pra Ser) ou, envolta nas turbulência de dúvidas passionais, naufragando no mar dos que partem sem volta (Dessa Vez).

A humanidade, traída pela própria ilusão mortal da conquista da condição de poluidora e pela falsa-vontade de desperdiçar a vida e o prazer de viver, vê o mar pela janela da rotina; uma “onda depois doutra onda” (Meu Bonde), como um afoxé de olhos marejados em trilhos de funk. Mas Adriana insiste em fruir ludicamente, em abraçar o mar com tudo; e chama guitarra e percussão para deslizarem juntos com a composição de Péricles Cavalcanti que pega prancha na crista das ondas e nos túneis de água curva, em declaração de bem-querer essencial: “A minha terra é o mar / O meu céu é o mar / O meu castelo é o mar” (O Príncipe das Marés).

Por mares agitados, por calmarias, no coração de Adriana Calcanhotto cabem também as fronteiras espumadas, a areia, o litoral, todo lugar de embarque e desembarque dos que sonham com viagens e viajam na pegada carnavalesca dos metais e dos tambores que vibram em seu infinito interior. “Eu, menos meu nome / Menos meu reino / Menos meu senso / Menos meu ego / Menos meus credos / Menos meu ermo // Querendo teu beijo” (Margem).

Em sua baldeação existencial a cantora se retrai para revelar amor marinho, encanto de sereia e canto sobre as águas do amar sem fim. Com Maritmo, Maré e Margem Adriana Calcanhotto vem percorrendo uma longa rota de desejos, quereres e prazeres surgidos na lonjura e emersos da fundura dos amares. Belas e sensíveis canções dessa trilogia MMM estão no repertório da turnê de lançamento do seu novo álbum, que passará por Fortaleza, dia 15 deste mês de setembro, no Teatro RioMar, em adorável nau de cancioneiro poético.