Flávio Paiva é convidado pelo amigo, pintor e pesquisador Estrigas (Nilo de Brito Firmeza) para prefaciar seu livro de memórias “Hoje e o tempo Passado – Um Encontro com as Lembranças”, no qual o artista plástico, vítima de câncer, se despede da arte e da vida, e organiza o Mini Museu Firmeza (ou Espaço Cultural Firmezarte), criado por ele e pela também artista plástica, sua amada Nice Firmeza, para que venha a funcionar “dentro de novos tempos”. Na última linha dessa obra, Estrigas formaliza a sua despedida: “Estamos partindo para outros compromissos, atendendo a outros chamados. Adeus”.

Escritos de Despedida

Flávio Paiva

Antes mesmo de concluir a leitura dos originais deste livro de despedida do querido Estrigas, suas palavras foram me trazendo à mente a imagem do pé de ipê roxo do quintal do sítio-museu Firmezarte, com suas folhas caindo em suaves rodopios enquanto acontecia o fenômeno da floração. A harmonia natural dessa passagem repousa nos escritos de “Hoje e o Tempo e O Encontro com as Lembranças”.

Feita com o que a memória foi liberando para o autor na sua reta de chegada aos 95 anos de idade, essa obra não apresenta preocupações com a velocidade dos dias, nem com virtudes absolutas das recordações. Dividido em três capítulos, embora o terceiro integre o segundo, como contribuição externa às lembranças, esse precioso livro é mais perturbador pela atitude declarada de adeus que carrega do que por seu próprio conteúdo biográfico.

O choque entre o gesto de separação e, ao mesmo tempo, de eternização de vínculos é uma sábia formalização do encerramento de um ciclo de vida. Estrigas tinha começado em 2011 a anotar suas reflexões sobre estética, fazendo associações entre panoramas das manifestações artísticas e alusões a momentos da arte, a partir das visões dispostas nos livros que lia a cada mês. Com o falecimento da sua amada companheira Nice, em 2013, tratou de finalizar o tempo intermediário entre a partida dela e a dele, diluindo a dor da ausência em cores e frases medradas do seu infinito interior.

Nesse intervalo, procurou organizar as bases de como o Espaço Cultural Firmezarte, construído por ele e pela Nice ao longo de tantas décadas, funcionará “dentro de novos tempos”; definiu o lugar de suas cinzas ao pé do baobá; produziu lindas aquarelas para uma derradeira exposição em vida e concluiu este livro: “Eu, no silêncio do Mondubim, dentro de mim”. O impressionante é que nada disso sugere peso de luto. As lembranças registradas nessa conversa solta com o passado expressam bem o que ele chama de “atração misteriosa” que o uniu à arte, e estende às últimas consequências o arbítrio na condução do seu estilo livre de ser e viver.

Estrigas tem a convicção de que “o lugar da arte é a própria obra de arte”. Ao escrever este livro, sacralizou também o lugar da vida na própria vida. Assim, arte e vida surgem e desaparecem para ele pelo elemento da sensibilidade humana em busca de cosmovisão, mesmo com as amarras dos contextos e com as inquietações da vida artística ante os segredos da arte. Talvez por isso não tenha feito qualquer esforço para deter a ação decisiva da natureza em sua desativação biológica. Como um astrônomo conhecedor do ciclo da vida das estrelas e do que acontece com elas quando acaba o hidrogênio, Estrigas tratou lucidamente de aproveitar a beleza da luz.

Nas páginas de “Hoje e o Tempo e O Encontro com as Lembranças”, o leitor pode encontrar recordações da infância do autor na rua, no mar e no sítio do Mondubim onde ele passava as férias, lugar que se tornou o recanto sagrado da vida e da arte do casal Estrigas e Nice. A convivência com familiares, amigos, professores, outros artistas e visitantes do Mini Museu Firmeza também permeiam esses escritos de recato, mas não de solidão. No último parágrafo do seu último livro, escrito no dia 20 de maio de 2014, Estrigas assume sua partida para outros chamados e compromissos que certamente considera tão misteriosamente atraentes como a arte. Adeus, mestre!!!