O sussurro constante do mar havia me embalado por toda a noite. A ressonância do som das ondas limpou-me por dentro, proporcionando o descanso necessário para um sono reparador. Acordei tão esperançoso que me senti ingênuo em meu veemente desejo de viver em um mundo mais justo e menos desigual. Respirei fundo e, ao abrir a porta do quarto que dá para a praia, meus olhos depararam de um só lance com uma paisagem imponente em sua delicadeza.

Emoldurado por galhos de árvores em silhueta, um recorte de mar desnudava a calma potente de sua grandeza enquanto o dia nascia. Flutuando acima do horizonte, uma caravana de nuvens silenciosas seguia a suave luz do sol daquela manhã tranquila. Ao ritmo da brisa matinal e do marulhar que seguia em sua cadência relaxante, pensei por um instante no que seria do ideal social se apreciar o mundo fosse mais valoroso do que possuir suas partes.

A paisagem como ilustração do mundo ao alcance da nossa vista tem atributos de subsistência imediata. A paisagem nua, o encontro do céu com o mar e do mar com a terra firme, muda o sentido de suficiência, do motivo de acordarmos a cada dia. A paisagem como campo de reflexão dispensa filtros de controle de luz e de cor, fones de ouvido e outras próteses tecnológicas para ser apreciada.

Os receptores sensoriais humanos integram a privacidade da natureza e necessitam de lugares e momentos em que possam experimentar o natural e o sobrenatural, o real e o transcendente, a imagem e a ilusão sem recursos de realidade aumentada ou inteligência artificial. Diante de si, no corpo pleno da paisagem, ser pessoa é sentir os itinerários que traçamos na espiral de nossas vidas, como sedimentos de infinitos indivisíveis.

Amanhecer no mar de Paracuru. Foto: Flávio Paiva.

No entanto, essa paisagem inspiradora é perturbada pelas lembranças dos bombardeios, matanças, genocídios, golpes, crises humanitárias e migrações forçadas que acontecem neste instante em Gaza, na Ucrânia, no Iêmen, em Mianmar, Azerbaijão, Etiópia, República Centro Africana, Sudão do Sul e muitos outros territórios devastados por conflitos de poder. Sem contar com as tensões entre as Coreias e a ameaça de invasão da Guiana pelo governo venezuelano.

Quantas causas provocam cada um desses acontecimentos é uma conta difícil de fazer, haja vista as razões de cada povo, os acúmulos de violência constantes em suas histórias e o gérmen imperioso presente nos grupos étnicos e de proteção. Nos tempos atuais, é significativo o embate assimétrico entre praticantes da neopirataria global, lotados no sistema financeiro e nas corporações transnacionais, e os defensores da consciência planetária, agrupados nas esferas da sociedade civil e dos governos democráticos.

O desejo de dominar a qualquer custo o que puder ser dominado é um entrave à ambição de existir em um mundo bom de se viver. Talvez soe contraditório falar em ambição de existir, mas, sem gana para dignificar a vida, existir pode resumir-se a prosperar para a morte, destruindo uns aos outros e o próprio planeta do qual fazemos parte, desconsiderando o que cabe a cada um de nós assumir durante o percurso.

Esses pensamentos foram embora e outros chegaram reforçando o meu vínculo com a paisagem. Ali estava o olhar ancestral sobre o horizonte e a visão da terra a partir dos náufragos. Vieram-me também contares e cantares de mar, nadando e mergulhando em experiências, fantasias e imaginação. Tudo muito familiar e desconhecido ao mesmo tempo, o que não chegou ao conhecimento dos nossos antepassados e o que não chega ao nosso conhecimento hoje, como testemunha do que não se viu e do que não se vê.

 

Fonte
Jornal O POVO