A aprendizagem da alternância
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 27 de Março de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Aproveitei o feriadão da Semana Santa para fazer uma santa descoberta. Fui conhecer a Escola Família Agrícola Dom Fragoso, em Independência (320 km de Fortaleza) e retornei cheio de esperança por tudo o que vi de bom acontecendo naquela experiência geradora de perspectiva para a dignidade da vida na caatinga. Diante de um mundo rural em acentuado estágio de despovoamento e de degradação ambiental, essa iniciativa, ainda única no Ceará, inspira confiança nas forças sociais que não se cansam de acreditar no futuro.

A escola, fundada em 2002 por iniciativas locais, conta atualmente com 85 estudantes de 52 localidades da região dos Inhamuns e dos Sertões de Crateús. Orientados por dez monitores, quase todos em tempo integral, esses jovens compartilham aulas de agricultura, pecuária e apicultura, juntamente com as disciplinas da grade curricular do ensino fundamental e médio. As instalações para a vivência em grupo, com salas de aula, auditórios, biblioteca, refeitório e alojamentos, integram-se a equipamentos de campo, com pomar, horta, pocilga, aviário, viveiro de mudas, tanque de peixe, açude e espaço para manejo de ovinos, caprinos e bovinos, em uma área rural de pouco mais de cem hectares.

O que de mais transformador identifico nesse tipo de experiência é a prática da pedagogia da cooperação, da valorização e comprometimento familiar e do desenvolvimento local com respeito ao meio ambiente e à cultura. O aperfeiçoamento das relações sociais, do jeito de educar e de produzir com equidade e participação, promove o enriquecimento da sociabilidade e oferece respostas às expectativas da juventude rural, assediada a todo instante a migrar para os centros urbanos. Aprende-se naquela escola que os cuidados com a vida são responsabilidade e privilégio de homens e mulheres, por isso a oportunidade de acesso ao conhecimento não discrimina gênero.

Os estudantes produzem boa parte do que consomem e complementam suas necessidades alimentares com produtos que levam das suas comunidades de origem. Eles passam 15 dias na escola e 15 dias com a família em um processo de educação colaborativa e complementar, conhecido como pedagogia da alternância. A troca de saberes entre pessoas de regiões diferentes e o exercício da reciprocidade constante entre teoria e prática, constituem legítimos e desafiadores instrumentos dessas comunidades de aprendizado.

A pedagogia da alternância permite novas experiências culturais e sociais. Faz com que os saberes transmitidos ao longo de gerações sejam postos em movimento, não para uma volta ao passado, mas para, por meio da permuta de conhecimentos, poderem contribuir na impulsão do futuro. A institucionalização do vínculo comunidade-escola-comunidade, com base na integração e no exercício contínuo da troca, aproxima o sentido da educação e do ensino da realidade e da história de vida de cada estudante.

Os conteúdos do saber comunitário sobre a realidade e sua prática efetiva fazem parte das aulas, assim como o conhecimento formal é levado para serem testados nas comunidades. Os modos de convivência com o semi-árido, de produção de sobrevivência e de usufruto da riqueza dos ambientes sensíveis também estão diretamente associados à realidade de cada lugar. É como se houvesse uma individualidade comunitária, possibilitando que estudantes de comportamentos diferentes se engrandeçam pela multiplicidade de saberes a que passam a ter acesso na convivência da escola familiar agrícola. A identificação na maneira de viver do outro facilita com que vejamos o que muitas vezes temos diante de nós e não conseguimos enxergar.

Em tese, a percepção de que existe um saber científico contido nas práticas populares comunitárias aumenta o respeito dos jovens pelos mais velhos e os leva a querer descobrir o porquê das coisas e os caminhos para a compreensão de algumas razões dos fenômenos ligados à agricultura, à pecuária e aos seus manejos específicos. A aprendizagem como busca, provocada por necessidades que se evidenciam no dia-a-dia, cria as condições para a geração de um novo modelo de cidadania integral, inspirado em parâmetros ecológicos.

A prática da pedagogia da alternância em casas familiares rurais vem da década de trinta do século passado, quando os franceses identificaram a necessidade de uma escola vinculada à subsistência no campo, que pudesse trabalhar com a experiência concreta dos estudantes, estimulando-os a não migrarem para a cidade. A experiência vem se espalhando pelos cinco continentes e as estimativas já indicam a existência em todo o mundo de mais de mil dessas escolas voltadas para a educação não-convencional.

No Brasil há várias experiências dessa proposta de ensino-aprendizagem contínuo para jovens da zona rural, caracterizada pela aplicação da teoria à prática e da prática à teoria no vai-vem entre a comunidade e a escola. A Escola Família Agrícola Dom Fragoso é, portanto, uma semente vicejante que nós cearenses temos em mãos para semear um projeto pedagógico voltado para a formação de jovens lideranças para a vida rural. A idéia de que a caatinga é um bioma descartável precisa ser abolida da nossa gramática política. Mais do que isso, precisa ser substituída pela idéia do seu fortalecimento, como sistema de produção compatível com o sentido de permanência.

Instituições como a Escola Família Agrícola Dom Fragoso podem funcionar como meios de emancipação de jovens que querem escapar da sucção das periferias urbanas, em um contexto de dificuldade de sobrevivência, marcado pela metropolização. A pedagogia da alternância oferece uma experiência de alternativa econômica e social para a superação do medo das exclusões. A síndrome social de não se urbanizar, de não virar manequim, pode ser compensada pela autoconfiança resultante da ação afirmativa do compromisso comunitário e ambiental.

O grande embate do século 21 será entre os detentores de inovações tecnológicas e os detentores dos saberes da biodiversidade. Entre os países que destruíram suas riquezas naturais, mas desenvolveram tecnologias sempre de ponta, e os países que ainda têm as maiores reservas naturais do planeta, mas com conhecimento praticamente restrito à ciência popular.

Imbuídos na crença de que, mesmo em condições desiguais, vale a pena enfrentar os que estão destruindo o planeta, os defensores da pedagogia da alternância têm recorrido a um velho sistema integrado de botânica e zootecnia, para trabalhar a agropecuária sustentável. O uso da terra e do manejo de vegetais e animais é feito com o máximo de aproveitamento do que um pode beneficiar o outro em suas conexões biológicas. Como rápida ilustração vale imaginar uma criação de patos no entorno do tanque de peixes, que se alimentam das fezes dos patos e cuja água, rica de nutrientes, pode ser utilizada para irrigar grãos que, por sua vez, servem de alimento aos patos.

O que era uma prática empírica e intuitiva de comunidades nativas ganhou mais recentemente, há pouco mais de três décadas, o nome de “permacultura”. Com isso, o conceito de agricultura permanente passou a englobar o planejamento estruturado de ambientes sustentáveis. Existe uma boa quantidade de unidades de produção familiar e de entidades que cuidam dos sistemas agroflorestais, inspirados nesse conceito. A Escola Familiar Agrícola Dom Fragoso, de Independência, é uma delas, nessa semeadura do aproveitamento combinado dos saberes tradicionais e da ciência contemporânea.