A Assumpção do Beleléu
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Domingo, 06 de Julho de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Acompanho a obra seminal de Itamar Assumpção como quem se delicia e se orgulha de viver numa terra de tantos compositores marcados pela genialidade. Guardo comigo muitas recordações agradáveis embaladas pela música desse brasileiro de Tietê (SP). O velho Beleléu partiu no mais recente dia dos namorados. Tinha 53 anos e a convicção de que merecia respeito. Era altivo em sua amargura. Parecia sempre desnudo pela força de uma fúria criativa incomum. Elevado aos céus da dignidade pelos princípios com os quais regia a sua arte, viveu enterrado no inferno de um cotidiano de exclusão compelido pelos cafetões da industria fonográfica a muitos dos talentos que não aceitam o jogo da prostituição artística.

Itamar não tinha salvação nesse meio corrompido e impune. Não se deixou confundir, nem deixou de fazer arte para receber as bênçãos da chamada era “on demand”. Morreu insistindo na alforria dos que desejam a oportunidade de acesso ao que realmente se produz de boa e diversificada música no Brasil. Viveu a tensão dos rebeldes. Pagou caro por isso. A cultura ainda não recebe atenção estratégica em nosso país. Temos a música popular mais esplêndida e invejável do Planeta e deixamos que algumas multinacionais do disco definam o que devemos ouvir e a quem devemos nos dirigir como ídolos.

A ausência de um artista de grande valor gera muitas vezes a necessidade de novas investigações sobre a sua obra. Por enquanto Itamar é estrela-guia perdida na galáxia da nossa acomodação cívica. É fácil observar o silêncio provocado pelo desconhecimento e pela falta de alcance popular ao seu trabalho. Não há de ser nada. Ele deixou pano para as mangas. Na sua obra, gravada em uma dezena de discos antológicos, o sentido do ato de dizer tem tanta importância quando o que é dito no discurso musical. É uma arte sincera, portanto, duradoura.

A diferença de artistas da qualidade de Itamar Assumpção para os que são produzidos de maneira artificial vai além das aparições na mídia e do número de discos vendidos. Essa diferença está exatamente na durabilidade da sua música e na permanência do autor nas obras de referência. Quimicamente o diamante e a grafita são iguais, por serem formados pelo carbono. Entretanto, o diamante é a mais resistente e brilhante das pedras preciosas, enquanto a grafita é encontrada em grandes quantidades e pode ser produzida em processos não naturais. Por analogia, este sentido de eternidade acompanha a Assumpção do Nego Dito.

A cabeça de Itamar tinha uma incrível capacidade de dar convivência aos contrapontos invertíveis. A própria estrutura que o acompanhava e o amparava tinha como principal característica uma coexistência de sensibilidades: as Orquídeas e a Isca de Polícia. No orquidário ele exercitava, com um grupo de madonas exóticas, toda a sorte de troca de frases, vozes e aliterações, atribuindo funções destacadas aos vocais femininos em clima de sonoras prendas e contendas. Cercado pela banda de espirituoso nome colhido nas adjacências da apartação e formada por um arquipélago de músicos virtuosos, ele jorrava lavas incandescentes redesenhando o relevo da MPB. Nesse dualismo, produziu um trabalho ao mesmo tempo cortante e suave, cheio de sutilezas intempestivas, e pleno de singularidades emotivas.

Um dos mais importantes compositores de música urbana brasileira, Itamar Assumpção foi o responsável por uma inflexão na originalidade da linguagem musical inspirada na arte de cantar a cidade pelos olhos da periferia. Fez isso com profunda autenticidade e bem antes da importação do hip hop. Se essa moçada tivesse tido acesso à grandeza da estética e da fala do Beleléu teria tido um ganho conceitual sem par nas suas movimentações sobre as ruínas onde estão desaparecidos muitos dos detalhes reveladores da brasilidade. A ponta da meada da música plural brasileira, com fio de terra na periferia, está em algum compasso do reggae, do funk, do rock e do samba que temperam o suingue e a musicalidade de Itamar. Ritmo e poesia, o binômio do RAP, faz parte de uma crônica social cheia de inspirados sarcasmos, de devaneios carnais e de inflamados desejos.

Impregnada de figuras existenciais, a música de Itamar Assumpção virou a mesmice pelo avesso e rompeu com o superficialismo da agenda da composição de resultados. A trama do mercado da música é complexa e cheia de poderosos conluios contra os que não aceitam as suas regras. Artistas como o Itamar são normalmente forçados ao esquecimento na encruzilhada de estereótipos. Mas nada deterá o reconhecimento da sua música fecunda que segue reverberando tempo afora. Até sempre, Beleléu.