A bolsa-dignidade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 27 de Maio de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Toda vez que somos levados a lugares fechados e neles a ficar próximos de alguém desconhecido, tendemos a nos esquivar do olhar alheio. Assim como a disciplina dos corpos no espaço e no tempo tem os seus estranhamentos na individualidade, a vida coletiva também sofre de limitantes relacionais. No cotidiano brasileiro, o mais agressivo deles é o econômico-social. A desigualdade provocada pela concentração excessiva da riqueza e das oportunidades de ascensão social faz com que dia após dia a minoria privilegiada brasileira se sinta mais e mais sozinha em seu ledo egocentrismo.

O desconforto da apartação puxa os mais abastados para a ampliação do mercado de consumo de drogas e arrasta os desafortunados para as estatísticas da criminalidade. Essa figura de efeito demonstra o quanto se faz necessário direcionar esforços para a integração social. A intensificação do programa Bolsa-Família, do governo federal, tem sido um paliativo espetacular no trabalho de terraplanagem para nivelar o chão das relações no Brasil. Com quase dez milhões de famílias assistidas, pode-se dizer que o programa já quebrou a inércia da desigualdade.

Superada essa fase da emergência torna-se necessário, portanto, avançarmos para não degringolarmos para a caridade pública. E esse risco está contido no paternalismo e em outros sistemas de dependência que impedem o desenvolvimento com eqüidade. As saídas para o crescimento da fissura de classes têm sido as mais decalcadas possíveis dos regimes de cotas, importados de realidades que não têm nada a ver com a nossa.

Estamos, com essas imitações baratas, caindo na armadilha da segregação racial e religiosa, quando a custo muito alto de vidas dos nossos antepassados fomos colocados muito à frente dessas questões. A miscigenação e o sincretismo, embora resultantes de improvisos históricos, tornaram-se a nossa maior força enquanto nação. A problematização econômica, sim, nos tira a integridade, fere as relações interpessoais e deveria ser o nosso principal enfrentamento cultural e político.

Se quisermos passar ao largo da hipocrisia e da reserva de mercado social precisamos concentrar esforços em nosso problema mais estrutural, que é a discriminação econômica. Neste aspecto, o rumo mais claro da evolução do Bolsa-Família parece ser o estabelecimento da Renda-Mínima. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) vem há um bom tempo insistindo na saída por meio da criação de uma política de renda básica, com a qual o País garantiria a todos os brasileiros uma espécie de cota-parte da brasilidade.

Quando comecei a ouvir essa proposta, fiquei encantado com o seu alcance, mas por exercício da ignorância achei que isso talvez não fosse possível. Sai perguntando a um ou outro conhecedor de economia sobre a viabilidade dessa proposta e descobri que o Brasil pode e tem como colocar em prática uma política de renda mínima. Se do ponto de vista das condições do Estado é realista promover essa transferência de renda a cada um dos cidadãos deste País, resta-nos saber como enfrentar a reação da elite política e econômica que aprendeu a sustentar suas benesses na miséria dos outros.

O programa Bolsa-Família ainda deve permanecer por alguns anos distribuindo renda e cumprindo o papel de proteção emergencial das parcelas mais fragilizadas da nação brasileira, requerendo contrapartida de freqüência escolar dos integrantes das famílias beneficiadas. Por mais que haja margem de erro nos levantamentos de freqüência escolar das crianças beneficiadas pelo programa, a variação percentual de alunos com mais de 15% de falta, gira em torno de dois a três por cento. Logo, dá para dizer, que estão criadas as condições mais elementares de inserção econômica e social no Brasil.

A proposta da Renda-Mínima parece-me muito boa como próximo passo para o Bolsa-Família porque, além de efetivamente policêntrica, rompe com a balconização da miséria. E para podermos alcançar um modelo superior de desenvolvimento temos que nos livrar da maior deformação do nosso padrão compensatório que é a da humilhante necessidade de identificação de pobres e miseráveis.

O que mais me atrai na proposta de criação de uma renda estabelecida no menor limite possível, a ponto de nos poupar da situação de selecionar carentes, é a sinalização política de que a renda mínima é um direito indistinto de todos os brasileiros. Do mais rico ao mais pobre, todos nós receberíamos esses “dividendos” pelo simples fato de termos direito. O País pode pagar. Isso nos proporcionaria a reconhecer um sentido de nação, um certo cuidado múto da coletividade, uma sensação autônoma de pertencimento.

Com todos os brasileiros passando a receber os seus, R$ 200,00 que seja, o País teria uma vida econômica muito mais ativa, com multiplicação de pequenos negócios, elevação sistêmica do consumo e, principalmente, criação das condições para o exercício da dignidade. Sairíamos, na maioria, da mera luta pela sobrevivência para pensar em uma nova espacialidade existencial que fosse mais honesta com os desejos, aspirações e co-responsabilidades de uma sociedade plural, diversificada e inventiva.

Perguntando a mim mesmo se esse é o jeito ideal de fundar um país, imaginei que não. Sempre procuro raciocinar no sentido de que a cultura deveria ser o catalisador da mobilização democrática, educacional e produtiva. Entretanto, se não é a melhor forma de fundar um país, vejo, nas condições do Brasil, uma maneira de refundar as nossas bases relacionais. E essa fermentação, por estar sujeita aos efeitos do poder econômico e financeiro das grandes corporações transnacionais, certamente projeta ameaças à nossa cultura. Entretanto, há de se confiar nos elementos do oculto do aparente que guardamos em todos nós e que nos move pelos afetos da paixão e da ação. Caso nos convençamos de que esse é um bom caminho, estou convicto de que é também uma oportunidade de florescimento das artes e de redescoberta do estatuto dos valores singulares da miscigenação e do respeito por todas as nossas matrizes étnicas.

Com uma renda mínima, a título de direito cidadão, teríamos mais chance de pensar por conta própria e de mudar alguns referenciais de interferência em nossa condição de vida, abrindo-nos a novas e desejáveis realidades. Não é panacéia, já que temos todo um sistema político, judicial, acadêmico e empresarial corrompido em suas bases éticas, para redesenhar. Mas poderá ser um tipo de bolsa-dignidade a nos proporcionar uma nova forma de apreciar o mundo sem cair necessariamente na ansiedade por devorá-lo até a exaustão.