Desde o momento em que incluímos Heidelberg no roteiro de viagem dos quatro aqui de casa, fiquei tentado a conhecer o Caminho do Filósofo (Philosophenweg), uma trilha de dois quilômetros que sobe e desce a serra localizada na margem do rio Neckar oposta ao centro histórico da cidade. Fizemos esse percurso em uma quinta-feira e foi bem tranquilo. No início, a subida, entre casas, ateliês, um instituto de física e muitas árvores, tem o gosto da busca que é comum ao esforço de pensar.

Nas proximidades do topo, a vegetação assume a predominância do ambiente sombreado, cheio de fartas passagens de luz solar, em clima fresco, como ocorre com a mente quando se tem a compreensão de algum sentido sobre o que se procura. Estávamos em uma pracinha que homenageia o poeta Joseph Eichendorff (1788 – 1857), que um dia escreveu ali o poema “Passou” (Vorbei), com versos que dizem assim: “Essa não é mais a floresta / Que descia suavemente a montanha / Quando eu me afastava da minha amada / Com o coração cheio de novas canções”.

Assim como Eichendorff, outros poetas, escritores e intelectuais importantes andaram a pé por aquele lugar, mas é interessante refletir que o conceito gerador do Philosophenweg tem muitos séculos e brotou do modo absorto com que estudantes da Universidade de Heidelberg (Ruprecht-Universität), fundada em 1386, subiam a ladeira para, a partir da floresta, contemplar o castelo, a igreja, a própria universidade e outras intervenções humanas construídas do outro lado do rio. A descida pela encosta é feita por escadaria íngreme e serpenteada (Schlangenweg), levando quem caminha a pensar onde está pisando.

A voz da reflexão que se escuta ao som do vento nas copas das árvores, que se faz presente na quietude da paisagem distante e no silêncio das nuvens em céu azul, é fundamental à educação que parte da pergunta. Essa é uma característica do fenômeno educativo que vem retrocedendo, enquanto avançam as sinergias entre o ensino de mercado, a fantasia da estética artificial e os preceitos sedutores do poder das novas tecnologias. Tudo isso afasta a sociedade dos pensamentos, deixando a sorte da cultura e da natureza ao sabor da servidão deslumbrada.

Placa de rua indicando o sentido do Caminho do Filósofo ((Philosophenweg), na cidade alemã de Heidelberg. Foto: Flávio Paiva.

Estudantes que são orientados a não precisar de livros e que não são estimulados a pensar como um exercício prazeroso pagam (literalmente) com sua humanidade o preço da angústia civilizatória que ajudam a intensificar. Em tese, as criações humanas são bem-vindas; seus usos, nem sempre. O que as corporações desestimuladoras da necessidade de pensar estão fazendo é pegando pedaços da inteligência da juventude e montando criaturas irreconhecíveis como a criada pelo Dr. Victor Frankenstein, no romance da escritora londrina Mary Shelley (1797 – 1851).

Confundida com a ficção, a realidade do terror da ignorância exaltada tem na educação o seu laboratório de inversão substancial de padrões entre ser e máquina, sujeito e objeto. É difícil escapar dessa associação de comportamentos. Somente encontrando ou construindo caminhos para a libertação do pensamento aproveitaremos melhor o que se inventa a todo instante. Esse intuito pede reticências e interrogações, para que se possa pensar o que nunca foi pensado e repensar habitualidades e rumos.

A experiência do Caminho do Filósofo resume uma falta que cresce nas expectativas da juventude e nas práticas educacionais. O contato com o meio ambiente praticado pelos então estudantes de Heidelberg nas buscas de si mesmos tem paralelo com a experiência das trilhas feitas em obras literárias, poéticas e artísticas. A leitura da vida, seja em caminhada na natureza ou nas páginas de um livro, abre-se de dentro para fora, pelo que revela de sentido de origem e de destino, possibilitando a vontade de furar as bolhas dos desastrosos parâmetros educativos impostos como inexoráveis.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/08/14/a-caminhada-dos-pensamentos-em-heidelberg.html