A cidade como sujeito
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 01 de Outubro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O agravamento das questões sociais em Fortaleza pede uma superação das fronteiras entre “os que entendem” e “os que não entendem” o que estão falando quando o assunto é urbanidade. A Prefeitura Municipal está experimentando pela primeira vez a construção de um orçamento participativo no qual a interação popular não fique restrita a ser parte de uma metodologia, mas a uma maneira de se revelar e de atuar. A Câmara se prepara para uma revisão da Lei Orgânica do município, inspirada na co-responsabilidade constituinte, sinalizando assim para um novo desenho democrático capaz de transpor os entraves às questões do imaginário e da subjetividade.

Vivemos um momento de expectativa de engajamento da sociedade, no qual a participação possa se dar como resultante de uma conquista política e cultural e não por concessões burocráticas. O contexto sugere o nascimento da cidade-sujeito, da cidade que fala e que não suporta mais ser apenas objeto de manipulações e relatórios bem acabados. Ouvir a cidade, ver a cidade, sentir a cidade em suas dimensões concretas e simbólicas carece do reconhecimento de que existe um novo lugar onde tomar parte da construção democrática é possível de acontecer numa confluência de atores pautada pelas relações integradas e não casuais. A ampla compreensão da importância da inclusão da cidade nela mesma determinará a qualidade dos avanços que teremos.

Esse encontro de buscas que reagem entre si, que trocam influências e que se modificam continuamente necessita da invenção de um novo lugar em nossas mentalidades departamentalizadas. A cidade somos nós e o sentido de destino dos nossos traços urbanos ingênuos e racionais, iluminados e obscuros, caminhantes pelas não-calçadas de uma arquitetura que encanta e reprime. Pensar Fortaleza é cuidar de saber o que ela nos diz e o que sente por nós na metalinguagem dos seus contornos e sotaques, sem pressa, olhando à beca. O que para muitos não passa de paisagem inútil, de verde desnecessário, ainda faz os pássaros cantarem para alegrar as nossas manhãs. A cidade-sujeito ainda tem pássaros cantando.

A crônica sobre Fortaleza nos descreve pelo colapso de gravidade das nossas fraquezas cotidianas, como se um buraco negro da perversidade estivesse a desintegrar toda e qualquer luz reveladora do nosso potencial de felicidade individual e coletiva. Sufocados por essa sensação de impotência que o tratamento da cidade-objeto provoca, temos nos empenhado em encontrar no comportamento hostil, soluções de insegurança. Os problemas de degradação das relações se resolvem muito mais com a intensificação da freqüência das pessoas nos logradouros públicos do que com o aumento das cercas elétricas. A violência é nossa cria, um bichinho de estimação que nos ampara e nos protege de um lugar longínquo e ameaçador que é o lado de fora da nossa casa.

Temos sol em abundância por fora, mas estamos obscurecidos por dentro. Precisamos abrir mais as janelas para deixar que a luz denuncie o nosso isolamento e que o calor tire o mofo do medo aviltante. A democratização das coisas boas passa pela brisa da memória, da história e pela valorização que a cidade dá a si mesma. A cidade-sujeito se emancipará quando formos capazes de reorganizar o entendimento que temos do que somos e do que queremos ser. Os enunciados de Fortaleza nos dizem que essa compreensão implica na melhoria da gestão dos espaços de bem-estar onde a cultura floresce pela semeadura da convivência, assemelhando os diferentes. Não há contra-ataque mais eficaz para o constrangimento iníquo a que fomos submetidos do que o estabelecimento de uma audaciosa despriorização da idéia de poder calcada em variáveis de superioridade e inferioridade.

A busca de saída para os efeitos do crescimento desordenado e a para a desaceleração do caos urbano depende da interpretação que damos ao discurso mudo da cidade. Olho para as placas das nossas ruas e avenidas e recebo pedidos e mais pedidos de socorro. São tantos nomes sem significado para os transeuntes que esse distanciamento maltrata a nossa memória social. O espaço de compreensão da cidade-sujeito está na consciência que as pessoas têm de si, do sentido comunitário que carregam e das ligações que fazem entre esses dois mundos. Este aspecto da formação cidadã corre à revelia das nossas políticas públicas. Para estimular o vínculo positivo entre a paisagem urbana real e a percebida é indispensável uma operação de sintonia fina especialmente entre os agentes de cultura e de educação. Senão, seguiremos lendo a cidade a todo instante sem nos darmos conta disso e sem sabermos reagir afirmativamente ao que nos incomoda.

Espera-se que na construção e execução do orçamento participativo, bem como na reforma da constituinte municipal, possamos fugir do estigma da cidade-objeto para tornar as manifestações mais profundas do espírito da cidade em fatos sociais desejáveis. Muitas cidades brasileiras têm conseguido avançar mesmo que pontualmente nesse sentido: no centro histórico de São Paulo, a Lei 14.017 impede a poluição visual causada pela mídia exterior, na tentativa de dar visibilidade à arquitetura antiga da cidade; em Olinda, a participação popular na movimentação cultural responsável em um patrimônio histórico urbano foi o ponto maior de atenção para a eleição daquela cidade, por parte de organizações internacionais e do Ministério da Cultura como a Capital Brasileira da Cultura 2006; em Campos de Jordão os grandes shows e micaretas são automaticamente proibidos nos meses de julho para que não atrapalhem o posicionamento cultural da cidade com relação à música formal executada no Festival Internacional de Inverno.

Exemplos de caminhos existem muitos. Fortaleza tem tudo para se encontrar no seu. Para isso, precisa ser ouvida, deixar de receber o tratamento de objeto e ser respeitada como cidade-sujeito: um sentimento comum, um semblante próprio e uma vida melhor. Não é fácil romper com os condicionamentos do simulacro. Tampouco é impossível. Vale o jogo onde a vida se desenrola. E nesse campo quem entende o que quer é quem está em campo. Inclusive os especialistas.