A conexão João Pessoa
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 04 de Junho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Reagi com muito contentamento ao anúncio de que o cantor e compositor Chico César assumira a presidência executiva da Fundação Cultural da cidade de João Pessoa. Pensei logo no quão essa feliz escolha do prefeito Ricardo Coutinho (PSB) traz de força simbólica e capacidade de realização para a capital paraibana e, consequentemente, para a região nordestina. Chico conhece bem a cidade, viveu nela e está com ela desde o grupo Jaguaribe Carne às recentes turnês com o Quinteto da Paraíba.

A gestão de Chico César pode ser um bom laboratório da nova política de cultura do ministro Juca Ferreira, voltada para o fazer cultural dos que realmente fazem cultura. O perfil do autor de ´De uns tempos pra cá´ se coaduna com os esforços do Ministério da Cultura (MinC) de reflorescimento da produção cultural por meio da vitalização do serviço público de cultura para a diversidade e a integração.

A experiência de Chico César é muito necessária para a complexidade de uma ação cultural voltada para a democratização, o diálogo e integração do local entre si e com o global, onde as redes sociais e a multiplicidade de comunidades físicas e virtuais acontecem para além do tempo real. São desafios que requerem maturidade, discernimento, vivência, enfim, existência.

Chico tem uma obra identificada com a paixão humana e com as causas sociais. Sua poética, sua musicalidade e sua figura pública estão pontuadas de inconformismos perante toda sorte de assimetrias culturais, econômicas e políticas. Como artista independente e intelectual atento ele dispõe de organicidade para contribuir com a produção de rumos, com a articulação, com o redesenho do papel dos órgãos públicos na ação transdisciplinar da cultura.

Ele não é celebridade apenas porque se tornou midiático. Ele é personalidade porque tem conteúdo, tem consistência em seu trabalho e tem compromisso com a vida. Tem algo positivo a agregar, a dizer, a criticar, a fazer. É popular, com requinte. Tem a inspiração dos que conseguem cuidar da arte que se tradicionaliza e, ao mesmo tempo, instigar a que se renova a todo instante. Chico César é o novo e o antigo, o local e o universal.

Para conciliar o cargo com a carreira, ele vai adotar a estratégia de Gilberto Gil quando foi ministro da cultura. Durante a semana será secretário em João Pessoa e nos finais de semana fará shows pelo mundo afora. Está provado que é possível conciliar. Antes de qualquer coisa, uma política cultural deve ser bússola, deve ter azimute e norte magnético para resultar em objetivação da cultura integral, na qual a oportunidade de visibilidade vai ao encontro do direito de acesso.

O maior desafio de um gestor de cultura é o de potencializar os estados sociais alienados para que percebam a política da cultura, sua relação com a educação e com o desenvolvimento sócio-econômico. Como equilibrar e desequilibrar, como unir e espalhar, como coesionar e extrapolar as necessidades e os desejos das partes e do todo. Como calcular de modo realista as relações de força e como priorizar o que precisa ser priorizado.

A luta econômica e a luta política são antes de tudo cultural. Cultura é política. A arte é política, o pensamento é político. O bom trabalho político é o que considera o que se movimenta e não apenas o que um ou outro grupo realça. Na cultura não deveria haver espaço para a imposição das afinidades eletivas das turmas. O trabalho de uma liderança cultural é o de instigar as diversas instâncias, os diversos segmentos a se mexerem mais e mais. Não é tarefa fácil e invariavelmente é muito desgastante.

Por raciocínio apenas lógico, Chico César não aceitaria ser secretário de cultura. Pelo que eu acompanho de sua vida pessoal e profissional, imagino que ele aceitou o convite do prefeito Ricardo Coutinho impulsionado pelo compromisso que tem com o discurso de suas canções. Ele é um vencedor no sentido concreto e simbólico do termo. Tem o compromisso dos sobreviventes. Já declarou isso no passado, quando fez a estatística das suas probabilidades, desde criança em Catolé do Rocha ao assento na galeria dos principais nomes da música plural brasileira.

Na condição de um dos mais respeitáveis artistas das novas gerações, Chico César é um autor que tem posição, que tem elaboração, que formula, defende, propõe e respeita o outro. Boa parte da sua vida pública tem sido marcada por essa forma de se colocar, tão necessária a uma realidade pontuada de artistas domesticados e intelectuais omissos. Ele nunca demonstrou medo da correnteza. Rema com seriedade, convicção e integridade para onde acha que deve remar. E, assim, foi para dentro do mundo conflitante da gestão cultural pública.

A configuração da cultura como dimensão estratégica ainda está bem aquém na atuação do governo brasileiro, comparando-a com as dimensões social, econômica, política externa, energia e democracia. Mais dia, menos dia, descobriremos que a equidade do desenvolvimento passa inevitavelmente pelo fortalecimento da cultura e que a qualidade de vida passa pelo aprofundamento e pela intensificação dos investimentos em cultura como necessidade básica, como expansão do sistema de proteção social.

Quando se fala em proteção social, quase sempre é feita uma confusão com assistência social. Entretanto, a seguridade social é formada por um conjunto de cruzamentos de políticas públicas, que trabalham com seguridade civil, seguridade econômica e seguridade cultural. A dívida cultural brasileira tem um passivo de indiferença que necessita de modos de distribuição e redistribuição de bens e serviços culturais, garantidores da integração social e estimuladores da inventividade brasileira.

Embora já positivamente diferenciadas dos tempos tucanos, as políticas culturais no governo Lula precisam seguir os avanços do sistema de proteção social brasileiro, que já deu aumento real ao salário mínimo, que vem fazendo uma ousada transferência direta de renda a famílias marginalizadas, que tem beneficiado alguns milhões de pessoas com seguro desemprego, que criou condições de atendimento a milhões de brasileiros com o Programa Saúde da Família (PSF) e que vem atendendo a milhões de estabelecimentos rurais com o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

A sustentação de todas essas políticas só se efetivará se parte da cultura também for considerada fator de proteção social. Aconteceu com o samba na era Vargas, com a bossa nova na era Juscelino e poderá acontecer com a cultura popular multirregionalizada na era Lula. Falo do pensamento cotidiano revelado na realidade objetiva e do pensamento de longo prazo nascido do sonho e da vontade individual e coletiva em seus interesses heterogêneos. Diante da valorização da cultura como o que há de mais rico em um povo, vejo nosso lapso autorreflexivo de rumos vestido com a roupa da utopia.

É neste âmbito, no escopo da dialética da complementaridade e da interdependência, que observo a importância da atuação de Chico César como secretário de cultura de João Pessoa. Ele tem raízes e antenas para o necessário revolver comunitário e para o intercambiar regional e mundial. Na era dos conteúdos, a expectativa de um nó, de um nós, no circuito nordestino faz bem aos saberes e aos quereres. A conexão João Pessoa pode ser um agradável exemplo de política cultural de fomento ao ambiente onde a cultura se expressa. A capital paraibana tem repertório para isso e agora tem Chico César morando lá novamente.